sábado, 14 de março de 2015

MARÇO/2015: MIXTA ENTREVISTA


Durante o intervallo de verão, annotei alguns ponctos levantados por
leitores. Desiderio e Yuri me advisaram sobre a creação de grupos no
facebook para compartilhamento de informações accerca da etymographia e
Philippe entrevistou-me ao longo de semanas. Abbaixo transcrevo os links
e uns trechos da entrevista.


https://www.facebook.com/groups/1565209547058921/
https://www.facebook.com/groups/1446724495614884/


P - A forma de todos os vocabulos de seu diccionario é a mesma utilizada
por Machado de Assis ou Lima Barreto, por exemplo, ou naquella epocha ja
havia divergencias na graphia devido não haver leis que regulassem a
escripta?

GM - Até a decada de 1940 os auctores mais lettrados practicavam uma
escripta mais rigorosa, outros relaxavam um pouco, ja que não havia uma
regra "official", apenas o registro dos diccionarios e as recommendações
dos grammaticos. Era a epocha do chamado systema etymologico "mixto",
que admittia algumas simplificações incoherentes, typo "actor" com "CT"
e "auctor" sem o "C", ou "sanccionar" e "sancção" ao lado de "sancto",
este sem o "C". Machado, Bilac e seus contemporaneos às vezes cahiam
nessas armadilhas, que procurei evitar uniformizando taes parallelismos,
como você verá. Quanto a mim, sou nascido depois da decada quarentista,
mas tambem me revoltei com o ultimo "accordo" e resolvi readoptar a
graphia que ja usara no inicio da carreira litteraria. Emfim, estamos no
mesmo barco.

P - Você graphou meu nome (Felipe) com o "p" geminado (Felippe) e eu
gostaria de entender o porquê. Na verdade a duvida é si meu nome deveria
ser graphado Philippe, como era antigamente, lembrando que "Felipe" não
é portuguez, e sim castelhano! Meu nome em portuguez seria "Filipe", com
"I" na primeira syllaba, dahi ser logico graphar "Philippe", mas sendo
castelhano, o correcto não seria manter "Felipe" mesmo, sem dobrar o
"p"?

GM - Felippe (ou Filippe), em materia de nomes proprios não pode haver
obrigatoriedade, ao contrario do que querem os phoneticistas, que
alteraram na marra Luiz para "Luís" e "corrigiram" o de Camões de Luiz
Vaz para "Luís Vás", mas tiveram que voltar attraz. Aqui tentaram
"reformar" os consagrados Raymundo Correa e Rachel de Queiroz e muitos
carneirinhos engoliram "Raimundo Correia" e "Raquel de Queirós".
Problema delles, né? Na practica, ignoramos as idiosyncrasias academicas
e coexistem formas parallelas, como Affonso e Alphonso, Adrianna e
Hadriana, Joachim e Joaquim, Aloysio e Aluizio. No seu caso, o mais
etymologico seria mesmo Philippe, forma anthroponymicamente inversa a
"hippophilo", aquelle que gosta de cavallos. Os inglezes até collocam um
"L" a mais no sobrenome Phillips, por exemplo. Os hespanhoes tiram o "H"
de Henrique e os italianos de Hugo, mas nem por isso deixamos de
accompanhar o Henri francez e o Henry inglez. Eu mesmo, que tenho José e
Silva no nome civil, qualquer hora mudo meus documentos para Joseph e
Sylva, que prefiro. Emquanto isso, vou escrevendo sob pseudonymos,
heteronymos, litteronymos e cyberonymos... (risos)

P - A respeito da pronuncia de certos vocabulos, a orthographia classica
adoptada por você(e que por mim tambem será apoz me adaptar a ella e
sanar algumas duvidas) tem como intuito alterar a lingua escripta
somente, ou você tambem crê que ha discrepancias na pronuncia que
deveriam ser tractadas com mais rigor quando corrigidas as palavras na
escripta? Um exemplo: "Acepção", que na graphia classica ficaria
"ACCEPÇÃO", tanto na graphia classica quanto na actual, pronunciamos
este "P" mudo, mas ja em "Exceção", que na graphia classica ficaria
"EXCEPÇÃO" accrescenta-se um "P" que hoje em dia ja não é pronunciado.
Para uma maior concordancia com a idéa etymologica como um todo, não
seria correcto pronuncial-o tambem, ou elle só deve existir na
escripta(o que mostraria uma certa arbitrariedade na pronuncia de certos
vocabulos)? O mesmo vale para "Averiguar", "Ameaçar", "Aversão" e
"Amedrontar", que na graphia classica ficariam "ADVERIGUAR", "ADMEAÇAR",
"ADVERSÃO" e "ADMEDRONTAR". Não vejo razão para não pronunciar este "D"
quando ainda hoje o pronunciamos em "Admoestar", "Advertir" e
"Advogado". O que você acha?

GM - Scientificamente fallando, em termos de philologia, são coisas
distinctas, a orthographia e a orthoepia. Uma não invade o territorio da
outra, ou seja, não cabe à orthographia dictar regras de pronuncia, e
viceversa, dahi o erro dos phoneticistas ao reformarem a orthographia
querendo imitar a pronuncia, como em "física" e "pronto" para "physica"
e "prompto". A prosodia é dominio popular e suas variações fazem parte
da dynamica da lingua; ja a graphia é dominio lettrado e deve ser,
quando e quanto possivel, normatizada e systematizada. Dahi que, em
Portugal, se falla "aspeto" e "insecto" e, no Brazil, ao contrario,
"aspecto" e "inseto". Ninguem pode interferir nisso, mas cabe à
orthographia fixar a forma mais complexa, "aspecto" e "insecto", pouco
importando si o "C" é mudo ou não, aqui ou alli, tal como o sotaque
vocalico em "fui pégo" ou "fui pêgo", "córação" ou "côração". A propria
palavra "orthoepia" pode ser dicta de duas maneiras, "ortoépia" ou
"ortoepía". Quanto às palavras que você destacca, são justamente
aquellas que, no systema mixto, Machado e Bilac desconsideravam. Só os
etymologistas rigorosos (como eu) as grapham com o "D" mudo, mas nem por
isso alguem deveria pronunciar o "D" de "adventura", ainda que o
pronunciem em "advento". São oscillações da lingua fallada, mas o que
acho fascinante na lingua escripta é justamente essa capacidade de
registrar lettras mudas, como em "augmento" ou "prompto". Concluindo,
fiquemos no terreno da escripta, que ja é um sacco de gattos, sem nos
mettermos na praia da falla, que pertence ao povo. Limitemo-nos a fallar
correctamente nos casos duvidosos, como "parolympico" e "anethico", e
não "paralympico" e "aethico"... Ufa! Isso dá panno p'ra manga, como
você vê nas notas que fiz ao diccionario, mas nunca é demais reaffirmar
taes ponctos.

P - Em relação aos tupinismos e à forma como você, na escripta classica,
os grapha, a duvida é do porquê de graphar: SS antes de A, O e U em
detrimento do Ç, como em ASSAHY, MOSSORÓ e varias outras palavras
formadas pelo suffixo -ASSU; G antes de E, I/Y em vez de J, como em PAGÉ
e MOGY; Y em syllabas tonicas ou em diphthongos/triphthongos em vez de
I, como em TUPY, GUAYCURU, JATAHY e GOYAZ (isso, I por Y, só seria em
tupinismos ou tambem occorre em palavras portuguezas?); E finalmente,
TUPAN e não TUPÃ? Ao ler as antigas grammaticas e catecismos em tupi,
escriptos por varios chronistas da epocha do descobrimento (Anchieta,
Luiz Figueira, Montoya, Antonio de Araujo), essa graphia classica, no
que tange a tupinismos, não é nada "etymologica", pois em nada coaduna
com a appresentada por estes chronistas supracitados, e a simples
mudança de I por Y poderia inserir na palavra uma pronuncia que nunca
existiu entre nossos indios! Veja bem, Anchieta e Luiz Figueira nunca
utilizaram SS, sempre Ç, e ha um motivo por traz disso: o phonema
sibilar surdo [s] nunca existiu em tupi. O que existia era uma fricativa
surda [ts]dahi usar Ç (o cedilha na epocha do descobrimento era
pronunciado TS em portuguez, só virando S muito depois). O Y, por
tradição (começada de forma muito feliz por Montoya) representava uma
vogal faucal inexistente no portuguez muito parescida com o YERY russo,
portanto não poderia ser utilizada na formação de
diphthongos/triphthongos, muito menos em vogaes tonicas como TUPY (esta
graphia, com Y, suggere uma pronuncia que nunca existiu entre os
indios!)

GM - Todas as suas collocações sobre a funcção dos phonemas na
representação escripta dos tupynismos e sua discutivel fidelidade à
pronuncia dos indios, todas ellas teem sua logica e demonstram que você
está bem embasado. Mas insisto neste poncto e peço que repare: tudo isso
recae numa supposta prioridade da phonologia em relação à etymologia,
coisa da qual discordo, ja que taes argumentos só servem ao interesse
dos reformistas que visam "simplificar" palavras como "tupy",
"Jundiahy", "assahy" ou "pagé" para "tupi", "Jundiaí", "açaí" ou "pajé".
Minha suggestão é que você não caia nessa armadilha, pois ella levaria à
acceitação das reformas que transformaram "physica" ou "prompto" em
"física" ou "pronto", como ja referi. No caso dos tupynismos, ser
etymologico não é ser fiel a uma supposta pronuncia indigena e sim
acceitar uma convenção adoptada por escriptores e grammaticos que nos
precederam nos seculos. O facto de que alguns chronistas quinhentistas
tenham tentado registrar phoneticamente um idioma que não tinha escripta
não basta para justificar uma orthographia simplificada, pois a
preoccupação delles era communicar-se com uma população então numerosa a
ser alphabetizada e catechizada. Hoje a unica utilidade dos tupynismos é
practicamente toponymica, zoologica e botanica. Nenhum etymologista deve
estar preoccupado si a graphia dum tupynismo facilita a conversação com
um indio. O que importa é padronizar o vocabulario geographico e
historico brazileiro. Fora disso, minha razão para repudiar a cedilha e
o til em "babassu" ou "Tupan" prende-se mais à minha ogeriza aos
accentos. Si eu puder trocar qualquer accento por uma consoante a mais,
ou simplesmente abolil-o, não hesito. Para mim a peor coisa que existe
numa representação escripta é substituir o pingo do "I" por um accento
agudo, por exemplo. No mais, procuro não "inventar" nada e sigo o que a
litteratura prequarentista ja consolidara. Apenas fixo certos criterios
com maior rigor que o dos auctores oitocentistas. Mas não vou muito
pelos criterios quinhentistas porque elles ainda estavam inseguros e
titubeantes quanto aos impasses entre o portuguez fallado e graphado,
sendo que os classicistas mais criteriosos ja estavam scientes da
dissociação entre pronuncia e escripta. Espero ter deixado claro que sou
radicalmente contra qualquer manobra simplificadora quanto aos
tupynismos e, si necessario, defendo até uma forma artificial (porem
tradicional) como "Nictheroy" em vez da mais logica "Niteroy" (mas nunca
"Niterói"), só para adoptar a alternativa menos simples. Meu negocio é
complicar, emfim. (risos) Você pode concordar ou não, mas sou daquelles
que acham que orthographia não existe para facilitar a vida dos
estudantes... (risos)

P - Na verdade o que eu quiz dizer com repensar a graphia de certos
tupinismos não tem a ver com simplificações que priorizam a phonetica, e
sim collocar lettras em seu devido logar! Veja por exemplo: ASSAHY
ficaria AÇAHI, apenas retiraria o Y e SS, collocando no logar o I e Ç,
sendo mais coherente com a graphia dos antigos grammaticos
quinhentistas(que apesar de graphar a lingua de forma phonetica,
faziam-no de accordo com sua graphia portugueza, de habitos graphicos ja
etymologicos, não?) e tambem oitocentistas(Couto de Magalhães seria um
bom exemplo), mas manteria o H que indica a occlusão glottal que
apparescia nos hiatos do tupi fallado. Mas nem todos os tupinismos
seriam affectados. Perceba que JUNDIAHY permanesceria assim mesmo, pois
está correcto este Y final que era pronunciado como um mixto de I e U,
exprimindo a idéa de "RIO" (Iundiá-Y, rio dos jundiás), assim como
permanesceriam JACAREHY (Iacaré-Y, rio dos jacarés) e PARATY(Parati-Y,
rio dos paratis, um typo de peixe). Mas este Y final jamais poderia ser
collocado em TUPY, isso seria um exemplo de total desconhescimento
"etymologico" da lingua tupi. Da mesma forma que PAGÉ não poderia ser
graphado com G, mas sim com J, sendo esta forma a mais "archaica" e
consolidada pelos grammaticos do tupi, e não mera reducção phonetica,
apenas um retorno a graphias muito mais antigas. O phonema sonoro
sibilar palatizado [j] não existia na lingua tupi, mas sim uma semivogal
"i" que por falsa percepção portugueza se transformou em "j": IACARÉ
virou Jacaré, IAGUARA virou Jaguar, PAIÉ virou Pajé...por isso J (mera
allophonia da approximante palatal 'i', assim como accontesceu no latim)
e não G (este usado somente no phonema velar sonoro). Palavras como
IPEROIG e UBATUBA deveriam ficar IPEROHY e UHUBATYBA (ou UBATYBA).
Quanto a NITEROY, tudo bem, mas NICTHEROY não faz sentido (o mais
correcto a meu ver seria NITEROHY, apesar de suggerir uma pronuncia
oxytona). Portanto não seria um acto phoneticista nem reduccionista
repensar essas graphias, eu continuaria pronunciando a syllaba final de
JACAREHY e TUPI da mesma forma, como a [i], mas numa eu escreveria com Y
e noutra com "I", exactamente por respeitar o character etymologico
dessas palavras, character este estabelescido por convenções
orthographicas adoptadas por escriptores e grammaticos que precederam
não somente a nós, mas tambem a escriptores e grammaticos oitocentistas!
Sei que seria algo realmente radical e que talvez não desse tão certo,
affinal de contas estes toponymos não ficaram assim vindos directamente
do tupi, antes passaram por linguas geraes ja corrompidas pelo portuguez
e outras linguas amerindias não tupi-guaranis, e por essa razão eu até
concordaria com a graphia que você adopta para estes toponymos, mas para
as palavras TUPI e PAJÉ, que não são toponymos e nem termos botanicos, Y
e G seriam inadmissiveis de um poncto de vista logico e historico.

GM - O que accaba sendo illogico e antihistorico é graphar "pagé" com
"J" e Bagé com "G". Si Bagé é um toponymo consagrado pela documentação
historica, mixturar "G" com "J" entre dois vocabulos, só porque um é
toponymo e outro não, isso sim, seria uma incoherencia. Ou se respeita a
tradição escripta, ou estariamos fazendo nossa propria reforma
phonetica. Você fallou que não faz o jogo dos phoneticistas mas está o
tempo todo usando argumentos phonologicos e não historicos. Si a
"percepção portugueza" do tupy era "falsa", paciencia. O que vale é o
que os portuguezes perceberam e registraram, mas mais ainda o que nós
mesmos, brazileiros posoitocentistas, acceitamos la attraz. Si Alencar
graphou "tupy" e "guarany", como Bernardo Guimarães assigna uma obra
intitulada O ELIXIR DO PAGÉ (tudo conferido em edições facsimilares),
não vou discutir com elles, mesmo porque gosto mais do "Y" que do "I" e
sempre que possivel adopto o chamado "I grego". Va por mim e deixe que
os phoneticistas esperneiem à vontade. Resumindo a questão, eu diria que
a orthographia etymologica talvez devesse ser chamada melhor de
orthographia consuetudinaria. Assim evitariamos essas questões
phonologicas que você levanta. Bastaria sabermos que, em determinado
momento, bem anterior ao reformismo novecentista, convencionou-se que
"tupy" e "pagé" seriam graphados desta forma, e poncto. O
conservadorismo que deve prevalescer na cultura escripta bastaria para
assegurar a intangibilidade de taes graphemas. Para mim, mais do que o
character consuetudinario, o que interessa é minha obsessão pela
complexidade orthographica. Quanto mais eu tiver razões para escrever
"Y" em logar de "I" e "G" em logar de "J", ou "PH" em logar de "F", ou
para addicionar um "H", ou para geminar uma consoante, mais
approveitarei taes opportunidades, ainda que a tradição ou o costume me
respaldem mais que a propria etymologia, como em "hontem" por analogia a
"hoje". Si você estiver commigo nessa attitude, seremos mais felizes.
(risos) Si não, você sempre achará argumentos para me contestar, como
occorria muito entre os theoricos prequarentistas. Na verdade, os
reformistas practicamente mactaram o debatte, ao engessar a escripta com
aquelle estupido criterio simplificador.

P - Agora que você explicitou melhor a respeito da graphia dos
tupinismos, que seria muito mais consuetudinaria do que etymologica,
isso basta para finalizar o debatte. Mas, ao ler excerptos de um texto
de Couto de Magalhães, exactamente sobre lingua tupi, fiquei na duvida
na graphia de verbos conjugados na 3ª pessoa do plural do preterito
perfeito e do indicativo futuro (creio que seja isso mesmo, corrija-me
si eu estiver errado): O verbo FICAR, por exemplo, seria graphado
classicamente com -ÃO, tanto no indicativo futuro quanto no preterito
perfeito, ficando FICARÃO, differenciando-se os tempos verbaes por um
mero accento agudo no primeiro A do preterito perfeito: FICÁRÃO.
Correcto? Bem, como você diz que a vogal I jamais recebe accentos, como
differenciar então, verbos como CAHIR, conjugados da mesma forma? Seria
somente pelo contexto, ou neste caso se acceitaria algum diacritico?

GM - Quanto ao verbo "cahir", o "H" differencia o tempo no indicativo do
tempo no subjunctivo, como em "cahia" e "caia". A differenciação entre
preterito e futuro deve ser como o costume indica: "cahiram" e
"cahirão". Eu jamais adoptaria um accento agudo a mais e um til a mais!
Si eu pudesse, eliminaria os dois signaes da lingua escripta!
Infelizmente, não posso, e tenho que acceitar o til pelo menos na
desinencia do futuro... (risos)

P - A orthographia septecentista é um pouco differente da que você
adopta(oitocentista)! Qual o motivo historico dessa divergencia? Não
seria mais "classico" retornar aos septecentistas? Por que levar em
conta somente os oitocentistas?

GM - A questão que você levanta é bem curiosa. Desde o quinhentismo os
raros eruditos foram fixando a graphia mais latinista e hellenica
possivel para o portuguez, mas até o septecentismo a litteratura
lusophona oscillou numa apparente bagunça orthographica e só no seculo
XIX houve maior consolidação. São varias as razões, tanto em Portugal
quanto no Brazil, que (convem lembrar) fez parte da cultura lusa até
principios dos oitocentos. Portugal esteve sob dominio hespanhol
(dynastia filippina, ou philippina, por signal), o que attrapalhou a
solidez orthographica do idioma. Basta notar que a cidade de São João
del Rey deveria se chamar São João do Rei. Mais tarde, a influencia
franceza adjudou a restabelescer o padrão classico, mas a proporção de
alphabetizados e, por tabella, de universitarios, era tão infima que
qualquer coisa escripta por um lettrado valia como parametro de norma
grammatical. Só com a disseminação das faculdades foi que a lingua
deixou de ser terreno de leigos ou autodidactas para tornar-se mais
disciplinada. Note que o diccionario de Aulete (do qual tenho a edição
original encadernada mas existe versão escaneada na internet) data de
1881. Mesmo assim, muita coisa só ficou definida no começo do seculo XX,
justamente na hora em que os opportunistas vieram com aquella onda de
reformas. Em summa, si você comparar um Claudio Manuel da Costa ou um
Thomaz Antonio Gonzaga com um Alencar ou um Machado, certamente vae
achar differenças. E si comparar a minha litteratura com a de Machado,
achará outras tantas! (risos descarados) Eu mesmo extranhei quando
confrontei minha escripta com a de Gregorio de Mattos e a de Bocage,
meus antecessores na poesia fescennina. Mas isso faz parte do dynamismo
da lingua, ainda que, no caso orthographico, a escripta caminhe na
direcção opposta à da liberdade fallada... Pelo menos eu acho que deve
caminhar na mão contraria, sinão logo estariamos escrevendo "vambora,
mermão" ou coisa que o valha... (risos) Emfim, o seculo XIX, alem de ter
sido mais desenvolvimentista em todos os sentidos, foi o auge da
consolidação das litteraturas nacionaes, tanto na Europa quanto aqui,
quando os indianistas (Alencar e Gonçalves Dias, principalmente) tambem
consolidaram a graphia dos tupynismos, ainda que, em alguns casos,
sobrassem indefinições.

P - Mas, como você mesmo escreve, ainda ha differenças entre um Machado
ou Alencar e você proprio, pelo facto de você eliminar alguns resquicios
da chamada graphia mixta, sendo um pouco mais rigoroso
etymologicamente...por que esse rigorismo não se extende a algumas
palavras como "Majestade" e Ojeriza"? Por que em algumas palavras impera
o character consuetudinario e noutras um maior rigor etymologico? Qual
criterio utilizado para isso?

GM - Quanto aos termos "ogeriza" (variante de "geriza") e "magestade"
(do latim), minha preferencia pelo "G" tem plena base, como aliaz ja
commentei no blog. Nessa questão do systema mixto, não me tornei
rigoroso da noite para o dia, mas fui apprimorando os criterios durante
a preparação do diccionario. Dahi porque alguns de meus livros estão no
systema mixto e só os mais recentes saem como escrevo agora.

P - Você transcreveu: {No latim, onde o "G" era sempre guttural, a
pronuncia orientava a graphia.} Bem, vale lembrar que não foi sempre
assim! O "G" era "sempre" guttural do seculo II antes de Christo até a
primeira metade do seculo V depois de Christo, consolidando depois disso
um valor phonetico(resultado de uma mudança que ja vinha occorrendo
naturalmente) de uma linguodental sonora palatizada antes de E, I e
Y(como é hoje no italiano). Inclusive a pronuncia official do latim da
liturgia catholica é exactamente assim, não por influencia do italiano,
mas porque é o mais proximo do latim do seculo V em deante(o italiano
tem determinada pronuncia hoje por influencia do proprio latim, não o
contrario). Ora, o "J" latino nunca teve e nem tem ainda hoje o som do
nosso "J", e sim do "I" atono como semivogal(isto ainda é ensignado na
pronuncia de hoje do latim, a pronuncia official do Vaticano, chamada de
pronuncia romana). Claro que occorrem pronuncias vernaculas(que nada
mais são que o latim pronunciado errado) taes como as que se ensignam(ou
ensignavam) aqui em nosso paiz aos estudantes de Direito, por exemplo,
em que JUSTITIA e MUSCAE se pronunciam JUSTÍCIA e MUCE(pronuncia chamada
de "tradicional" por Napoleão Mendes de Almeida). Não sei qual pronuncia
de latim você apprendeu, mas o que quero dizer com tudo isso, é que o
"G" de MAGIS (fallado MÁDGIS), foi graphado assim para não se perder o
"I" semivocalico que antecedia a vogal de valor phonetico egual, um
outro "I". Onde havia vogal posterior differente de "I", ou seja,
differente do radical primitivo "MAI", este "I" final do radical era
graphado "J", mas pronunciado como "I": MAJOR( MÁIOR), MAJESTAS,
MAJESTATIS( MAIÉSTAS, MAIESTÁTIS)! Concluindo: o J só virava G antes de
I, para não se perder na pronuncia. Portanto não ha confusão alguma
nascida no "proprio latim", e o exemplo "MAJISTRAL" de Nogueira é
infundado, pois é resultado de um criterio phonetico do portuguez, ja
que esta graphia no latim implicaria numa pronuncia que nunca existiu em
tal lingua: MAIISTRAL...ora, mas quem sou eu para corrigir o conceituado
professor Julio Nogueira... {Em portuguez, porem, o "G" anterior a "E",
"I", "Y" teve o mesmo valor de "J"} Isso seria applicar um criterio
phonetico de nossa propria lingua para graphal-a, não um criterio
etymologico! Você escreve que o "J" só se impõe onde corresponde ao "I",
mas elle corresponde exactamente ao "I" em MAJESTADE, assim como em
MAJOR e MAJORITARIO! Mas tudo bem, pois estou comtigo na graphia
MAGESTADE pelo character consuetudinario da escripta, independente si é
ou não errado etymologicamente. O que quero deixar claro nisso tudo é
que não vi nada alem da mais pura tradição, ja fundamentada no erro
advindo da graphia phonetica do quinhentismo, para justificar a graphia
MAGESTADE(e é claro, sua obsessão em collocar G no logar de J sempre que
possivel, conforme você mesmo escreveu). E exactamente por priorizar o
character consuetudinario da lingua em vez do etymologico, que discordo
de você na graphia "JEITO", preferindo graphar com "G"!

GM - Você está entendendo o "espirito da coisa": por mais que os
philologos discutam pronuncias, historica ou geographicamente, o que
vale é o costume arraigado. No fundo, o que chamamos "etymologico" é
isso: mais pragmatismo consuetudinario que propriamente scientificismo
phonologico, e assim accabamos concluindo que tambem nós, rigoristas,
adoptamos nossa forma de systema "mixto", só que com mais complexidade
em vez da simplicidade pretendida pelos reformistas. Meio subtil para os
leigos entenderem, mas você não é um mero leigo, logo está captando
minhas intenções. Si considerarmos que cada um daquelles theoricos
prequarentistas tinha liberdade para propor suas preferencias e
credibilidade para serem todos accaptados, posso eu tambem me julgar
sufficientemente auctorizado a propor minha preferencia pelo "G", menos
em "geito", não concorda? (risos) O importante é que quaesquer
divergencias se circumscrevem a poucas palavras e que, no geral, todos
nós, rigoristas, escrevemos na mesma orthographia, de matriz latina ou
grega consensual... Em dois aspectos sou mais rigoroso que os auctores
oitocentistas: primeiro, quanto aos verbos inchoativos (terminados em
"ecer" ou "escer", que unifico para "escer", inclusive "conhescer",
"merescer" e "parescer"); segundo, quanto aos verbos approximativos
(começados com assimilação ou não do prefixo "ad", que unifico como em
"approvar" e "approveitar", "advertir" e "advistar"). No systema mixto,
havia a duplicidade entre "accrescer" e "adoecer" (para mim,
"addoescer") ou entre "approvar" e "aproveitar" (para mim,
"approveitar") e você pode achar taes differenças no meu diccionario
quando uso "ou" para duas alternativas. Si você ficar com a mais
simples, está proximo da escripta oitocentista. Na maioria dos casos,
porem, a etymologia dicta as regras para lettras geminadas e outros
graphemas, seja o systema mixto ou rigoroso.

P - Lendo uns textos oitocentistas notei a utilização do accento agudo
para indicar crase, então gostaria de saber mais a respeito. Antigamente
se utilizava somente o agudo e só depois da reforma de 1943 é que entrou
na orthographia o accento grave, ou eram utilizados os dois diacriticos
de accordo com o gosto do escriptor? Qual você adopta e por quê?

GM - Antes da reforma usava-se o agudo para indicar a crase, sim. Ja
tractei deste poncto em outras opportunidades, mas vale voltar ao
assumpto. Dei preferencia à crase por opção minha, pois actualmente o
uso do agudo ficou muito ligado à funcção phonetica, como em "às" (a+a)
para differenciar de "ás" (campeão), dahi que, mesmo adoptando a forma
"az" como substantivo, acceitei "às" para a crase. Mas tambem acho
logico o emprego do agudo, como usavam os oitocentistas. Abbaixo copio o
que ja escrevi a respeito.

{A proposito dos commentarios que este blog recebeu dum attento "anonymo
do outro lado do oceano" (vale dizer de Portugal), quero aggradescer as
pertinentes observações. Respondo que adoptei a crase com grave ("à",
"àquillo") em logar do agudo e supprimi o apostropho ("nelle" e "disso"
em logar de "n'elle" e "d'isso") porque não ha consenso no emprego de
taes notações e porque adopto o criterio da minima accentuação, pelo
qual o agudo ja é uma excrescencia, apenas toleravel em alguns
oxytonos.}

P - Você ja me respondeu que não havia regras officiaes que regulassem a
escripta pré-quarentista, somente recommendações de lexicographos e
grammaticos, correcto? Esses grammaticos e diccionarios ja
recommendavam, por exemplo, essa "unificação" que você faz com os verbos
inchoativos e approximativos? Isso ja era recommendado no Aulete de
1881, por exemplo, ou é algo que você proprio deduziu respaldado, é
claro, num scientificismo etymologico muito bem embasado? Pergunto isso
porque, caso esses grammaticos e lexicographos oitocentistas ja
recommendassem esse rigor etymologico naquella epocha(por mais que
Machado e Bilac, por exemplo, não o utilizassem), podemos então concluir
que inexoravelmente, caso a escripta do portuguez não soffresse aquelle
descalabro total que foi a "reforma" de 1943, hoje a graphia seria a
mesma utilizada por você, concorda?

GM - Exactamente. O uso da opção "mais simples" prequarentista só vale
naquelles dois casos verbaes: AD=A e ECER=ESCER. Não havendo regras
officiaes para o systema mixto, cada philologo ou grammatico dava sua
contribuição recommendando algo, e eu dou a minha agora, unificando os
dois casos em AD e ESCER. Assim collaboro para "etymologizar" o que era
mixto. (risos)

P - Si, antes de 1943, não havia normas officiaes que regulassem a
escripta de nossa lingua, somente recommendações de diccionarios e
grammaticos, quaes seriam estes diccionarios e grammaticos que, no seu
poncto de vista, seriam os mais coesos para que eu approfundasse meus
estudos da "eugraphia" portugueza? Gostaria de eu proprio chegar às
mesmas conclusões que você chegou (primeiro pelo proprio estudo da
graphia classica que é um grande deleite intellectual para mim, e
segundo porque isso enriquesceria muito meu vocabulario), então, alem do
Aulete de 1881 que você ja citou, e o seu proprio diccionario, é claro,
haveria algum outro tão importante quanto, que deveria ser levado em
conta? E quanto aos grammaticos, quaes deveriam ser levados em conta?

GM - Indiquei no proprio diccionario as fontes mais importantes porque
as demais são mera redundancia. No caso das grammaticas, são innumeros
os compendios escholares das primeiras decadas do seculo XX, todos
influenciados por Eduardo Carlos Pereira e por Ernesto Carneiro Ribeiro.
No caso dos diccionarios, idem. O do Candido de Figueiredo, por exemplo,
nada accrescenta ao Lello ou ao Aulete. Para você, bastaria um Houaiss,
que tem até edição virtual, pois elle dá inclusive as formas historicas
divergentes da etymologia.

P - Você saberia me dizer si houve alguma tentativa de regulamentação da
grammatica e da escripta por parte de Machado de Assis e outros
immortaes quando foi fundada a nossa,hoje decadente, Academia Brazileira
de Lettras? Pois ja que a ABL foi fundada nos moldes da Academia
Franceza, penso que um dos propositos tenha sido o da regulamentação da
lingua escripta, tal como era naquella epocha, mas não encontro essa
informação. Poderia você me dizer si houve essa regulamentação e no que
ella consistia e como reagiu ao descalabro da graphia de 1943?

GM - Nenhuma regulamentação, que eu conhesça, partiu da ABL ao tempo de
sua fundação. Os primeiros academicos, a exemplo de Machado, só estavam
preoccupados em "immortalizarem-se". Gosto muito do Machado, mas elle
tinha seu lado vaidoso e moralista, impedindo, por exemplo, a entrada de
Emilio de Menezes na ABL por causa da vida bohemia e da poesia
desboccada. Mas o merito daquelles academicos era que, pelo menos, elles
barravam tambem quem não fosse escriptor. Ja na dictadura getulista foi
que os escriptores puxasaccos passaram a eleger politicos, a começar
pelo proprio Getulio, que lhes cedeu o terreno e o predio da ABL em
troca da cadeira. Desde então a ABL virou um antro de puxasaquismo. Pois
foi na epocha do Getulio que os opportunistas resolveram mexer na
orthographia, ja que um simples decreto do dictador lhes propiciaria
vender novas grammaticas e diccionarios, unica finalidade practica da
tal reforma. Machado, creio, não desceria a tal poncto. Elle tinha
orgulho, por si e pelos collegas, do officio de escriptor... (risos)

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