sábado, 29 de agosto de 2015

SEPTEMBRO/2015: DESUNIÃO FAMILIAR

Trez interessantes questões me foram propostas pelos leitores deste blog
de notas. A primeira diz respeito aos verbos da "familia" TRAHIR. Um
internauta cobra a seguinte explicação: Si todas as flexões onde occorre
hiato levam "H" nos "membros" da familia (ATTRAHIR, CONTRAHIR,
DISTRAHIR, EXTRAHIR, etc.) e si verbos de outras familias (CAHIR, SAHIR,
ESVAHIR) seguem esse paradigma, por que o mesmo não occorre com os das
familias que teem "U" em vez de "A" no radical, como FLUIR (e seus
familiares AFFLUIR, INFLUIR, etc.), CONTRIBUIR, CONSTITUIR, e assim por
deante?


Minha resposta é que a simples fonte latina não basta para explicar.
Verbos como TRAHIR e CAHIR teem matrizes em TRADERE e CADERE, mas SAHIR
vem de SALIRE e ESVAHIR ja tem formação vernacula, de ESVAESCER (que por
sua vez vem de ESVANESCER, que vem de EVANESCER, ou EX+VANESCER), com
troca do suffixo "ESCER" por "IR". A rigor, seria até admissivel a forma
EXVAHIR. A presença do "H", portanto, tem funcção ao mesmo tempo
phonetica e etymologica, justificada pela prosodia nos hiatos e pela
tradição escripta. Sempre cabe lembrar que, na terceira pessoa, como
occorre diphthongo em vez de hiato, o "H" desapparesce: CAE, SAE, TRAE,
ESVAE, bem como nas flexões CAIA, SAIA, TRAIA, ESVAIA. Quanto aos
radicaes vocalizados em "U", são da terminação latina "UERE", que deu
"UIR", sem nenhuma perda consonantal, dahi não levarem um "H" para
compensar. Pessoalmente, acho que o portuguez bem poderia, la attraz,
ter adoptado o "H" nos hiatos em geral, o que evitaria certas duvidas,
mas agora a tradição de seculos ja se firmou. Convem attentar para a
differença entre as graphias anterior e posterior a 1943: aquella que os
phoneticistas agora adoptam é "elle CONTRIBUI" (presente), "eu
CONTRIBUÍ" (preterito), emquanto aquella que adopto é "elle CONTRIBUE"
(presente), "eu CONTRIBUI" (preterito), ficando claro que, neste ultimo
caso, caberia bem um "H" em "CONTRIBUHI" que, infelizmente, não se
pensou em adoptar.


Si a familia TRAHIR é objecto dessa "trahição" etymologica, outras
familias suscitam duvidas entre os leitores, como a dos verbos em
SPIRAR. Si temos CON+SPIRAR, IN+SPIRAR, PER+SPIRAR, RE+SPIRAR, por que
desapparescem consoantes na composição com alguns prefixos, como "AD",
"EX", "SUB" e "TRANS"? Boa pergunta. No primeiro caso, o proprio latim
admittia duplicidade graphica: ASPIRAR e ADSPIRAR (analogamente a outros
casos prefixados em "AD+SP", como ASPECTO e ASPERGIR), donde a
possibilidade de graphar ASPIRADOR ou ADSPIRADOR, ASPECTO ou ADSPECTO.
Em outros casos, a tradição supprimiu o "S", como em EX(S)PIRAR e
TRANS(S)PIRAR. No caso de SU(B)SPIRAR, como em SU(B)SPEITAR
[SU(B)SPECTAR], houve suppressão do "B", differentemente de SUS+PENDER
ou SUS+TER, onde o "B" se transformou em "S" desde o latim.


Outra familia de reputação suspeita é a dos verbos em PUTAR, que nada
tem a ver com a puta ou prostituta, mas com o latim PUTARE que, si lhe
applicarmos todos os prefixos, dará verbos como APPUTAR, OPPUTAR e
SUPPUTAR, mas que nos interessa aqui por causa do verbo COMPUTAR,
existente no portuguez ao lado de CONTAR, que tem a mesma origem, ou
seja, dois filhos da mesma matriz, que não é meretriz mas tem um
legitimo e um bastardo. Ao bastardo refere-se o leitor que me pergunta
si não deveriamos, então, graphar COMPTAR, COMPTA, COMPTO,
COMPTABILIDADE, COMPTISTA, etc. A rigor, sim, como fazem os francezes,
que até differenciam COMPTE (conta) de CONTE (conto). Mas a tradição
escripta ja consolidou CONTAR para as duas accepções, numerica e
narrativa, de modo que não acho necessario haver trez formas (CONTAR,
COMPTAR e COMPUTAR) para a mesma palavra. Em todo caso, registrei as
alternativas no nosso diccionario.


Envie sua questão a mattosog@gmail.com ou seu pedido para receber uma
copia digital do DICCIONARIO ORTHOGRAPHICO de Glauco Mattoso.


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sábado, 1 de agosto de 2015

AGOSTO/2015: ORTHOGRAPHIA E ORTHODOXIA

Ao preparar um capitulo inedito sobre poesia e orthographia para a
reedição de seu livro POESIA & UTOPIA: A FUNCÇÃO SOCIAL DA POESIA E DO
POETA, originalmente publicado em 2007 pelo sello paulistano
Escripturas, Carlos Felippe Moysés me contempla com a seguinte allusão:

{O acaso [...] levou-me a tomar conhescimento da verdadeira cruzada em
que o poeta brazileiro Glauco Mattoso vem-se empenhando, na tentativa de
nos convencer a adoptar a sua "orthographia etymologica". Fosse outro,
seria só mais uma extravagancia. Mas tractando-se de um poeta maior, a
quem apprendi a admirar desde os tempos do "Jornal Dobrábil" (na
orthographia então vigente), pensei: vae ver, orthographia meresce
alguma attenção. [...] Alem de passar a graphar [...] seus decasyllabos
escrupulosamente medidos e rhymados, [...] Glauco chegou a organizar um
formidavel DICCIONARIO ORTHOGRAPHICO PHONETICO/ETYMOLOGICO, ja na
quincta edição , [...] em cujas paginas de abertura esclaresce: "Um
diccionario tão especifico não teria utilidade apenas para seu auctor e
para aquelles que prefiram escrever pela norma mais classica, mas para
todos os estudiosos do idioma e de suas transformações historicas,
independentemente de tendencias conservadoras, reformadoras ou
restauradoras. Tracta-se, portanto, d'uma obra linguistica de interesse
geral". [...] Considerados os exemplos possiveis (o de Mario, o de
Pessoa, o de Glauco e outros mais), todos parescem confirmar o que ja se
sabe, quanto à substancia essencial do acto poetico: rebeldia,
insubmissão, inconformismo, com mais ou menos discreta, mais ou menos
espalhafactosa dose de humor e ironia. Necessidade de transgredir, em
summa, de luctar não só com as "palavras", como lembra Drummond, mas com
toda e qualquer lei ou regra "official", que cerceie a liberdade do
poeta. A grammatica é só uma das "leis" impostas pelo systema, e a
orthographia é talvez a mais innocente, a menos tyrannica de suas
"normas". Della é sempre possivel livrar-se, bastando para isso
dominal-a, a fim de submettel-a ao crivo da imaginação creadora e da
inventividade: engenho e arte, como dizia Camões. Orthographia, não sei
si chega a ser "gente", mas sei que é só metaphora. Rebellar-se contra
ella ou é acto gratuito, mero desconhescimento de causa, ou é
rebellar-se contra outra coisa. E manifestar a revolta profunda gerada
pelas tyrannias em relação às quaes nos resta pouco ou nada a fazer. A
não ser, de vez em quando, dar attenção a "alguma poesia", para que a
lingua commum continue à disposição de todos. Ou para manter acceso o
sonho de liberdade.}

No prefacio assignado por Jorge Sallum para meu livro POESIA VAGINAL:
CEM SONNETTOS SACANAS, recem lançado pelo sello Hedra, sou assim
analysado, sob o titulo "A grande sacanagem historica de ainda escrever
sonnettos":

{Uma das primeiras coisas a se notar é a retroimpregnação (para usar um
palavrão) da forma com a graphia. O sonnetto é uma forma antiga. Antiga
é a poesia em lingua portugueza. Antiga (na verdade, archaizante) é
então a graphia de Glauco Mattoso. [...] Mais importante, a graphia
archaizante gera nestes sonnettos um attrito, digamos, interno com a
thematica, o vocabulario e a syntaxe contemporaneos, depois que estes
tinham sido ja admoldados à  forma fixa. [Phoneticamente graphando:]
"Sejamos francos: sexo é sujo. A pica / é suja. Uma buceta é também
suja. / Fudeu o dito cujo a dita cuja? / Juntou sujo com sujo:
justifica". A linguagem é directa, quasi colloquial, apesar da trama
sonora e das rhymas ricas como picca-justifica e suja-cuja . Dahi vem a
pista para a graphia, que é tambem sonoridade: não se tracta de
verdadeira escripta archaica, mas de uma parodia, posta a serviço da
densidade sonora. Dahi a versão original destes quattro versos ter muito
mais attritos sonoros do que a versão "limpa" accyma: "Sejamos francos:
sexo é sujo. A picca / é suja. Uma boceta é tambem suja. / Fodeu o dicto
cujo a dicta cuja? / Junctou sujo com sujo: justifica". O campo sonoro
do poema é marcado e/ou determinado pela aspereza e pela "espessura" de
suas consoantes recorrentes, "s", "j", "f", "x", reforçadas pela
predominancia da vogal fechada "u". O uso de novos "cc" em "dicto",
"dicta", "junctou", cria um som, "k(i)t", que é uma versão mais secca de
"x" ("x[i]s"), alem de augmentar a aspereza geral pelo augmento do
numero de consoantes (que são estructuraes), e particularmente pela
occorrencia de encontros consonantaes. O campo sonoro do poema, emfim,
fica mais aspero, mais "sujo".}

Para synthetizar as duas analyses, dizem que minha escripta desempenha,
ao lado de outros tropos e metaplasmos, o papel duma figura de linguagem
addicional que teria funcção essencialmente poetica: para Moysés, de
metaphora anarchizante; para Sallum, de parodia archaizante. Eu poderia
adduzir que um outro effeito tropico ou metaplastico da escripta
etymologica seria configurar aquillo que pode ser chamado de
"graphopopéa", no sentido de dar voz lyrica à morphologia das palavras,
assim como a onomatopéa a dá à phonetica e a prosopopéa à personificação
material ou animal.

Todas essas interpretações são procedentes, na medida em que traduzem
attitudes transgressivas a alguma norma imposta e generalizada. O
paradoxo, no meu caso (e vivo affirmando-me como paradoxal) seria que me
rebello contra a dictadura das reformas por meio duma reacção retrô, em
vez de me collocar em posição mais advançada ou vanguardista. Em outras
palavras, quando a orthodoxia é representada pela graphia official,
phonetica, a heterodoxia accaba sendo a adopção da graphia "prohibida",
etymologica, assim como o sonnetto accaba sendo revolucionario quando o
poema livre tornou-se obrigatorio.

Nada teria eu a objectar, ja que reconhesço as imputações anarchicas e
archaicas. Só tenho a resalvar que, ao contrario do que suggerem taes
posturas, não as assumo meramente em funcção da "adventura" poetica,
dramaturgicamente tragica ou comica, mas em funcção da vida, que não é
só theatro, embora o seja socialmente. Digo isto em defesa da verdadeira
fé com que professo a dicta "cruzada" contra o reformismo orthographico:
não estou brincando de imitar os classicos, nem só posando de
anticonvencional. Eu realmente accredito na minha excentricidade, não
apenas como comportamento individual do livre-pensador ou do
franco-attirador, mas como convocação collectiva a uma restauração
classicista. Não tem gente que crê na redempção humana pela lucta
classista? Pois bem, eu creio na recyclagem cultural pela lucta
classicista. Como diz o verso de Pessoa alludido por Moysés, "A
orthographia tambem é gente". Si minha patria é minha lingua, minha
cidadania é minha escripta, contra a qual nenhum Estado Novo, nenhuma
Nova Republica ou nenhum "accordo" academico tem poder legislador. Quem
estiver commigo que me siga. Quem estiver contra mim que me considere
quixotesco. Si eu for lido por pelo menos um fiel escudeiro, ja seremos
dois cavalleiros andantes. O resto é litteratura.

Envie sua questão a mattosog@gmail.com ou seu pedido para receber uma
copia digital do DICCIONARIO ORTHOGRAPHICO de Glauco Mattoso.

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