sábado, 4 de maio de 2013

FEVEREIRO/2009: "PORTUGUEZ FALLADO OU ESCRIPTO?"


Conversava eu com dois amigos, quando um delles, desattento, commentou
que minha opção pela velha orthographia seria imitação do inglez ou do
francez. Logo esclareci que, até pelo contrario, foi o inglez que seguiu
a graphia latina e "imitou" a nossa matriz. Na verdade, entre as
novilatinas, a coisa ficou equilibrada até os annos 1940, quando o
francez e o portuguez eram etymologicos, emquanto o italiano e o
hespanhol eram phoneticos. Quanto ao inglez, o etymologismo nem é tão
rigoroso quanto no francez: elles escrevem "literature", os francezes
escrevem "littérature", por exemplo. E são varias as differenças em
relação ao systema que adoptavamos no Brasil: elles escrevem "fantasy",
"Ezekiel", "author", emquanto nós escreviamos "phantasia", "Ezechiel" e
"auctor", mais correctamente, aliaz.

Fallando em correcção, reconheço que, entre nós, as proprias
auctoridades intellectuaes escorregavam de vez em quando, como o
grammatico Eduardo Carlos Pereira, o lexicographo Aurelio Buarque de
Hollanda e o poeta Olavo Bilac. Pereira, auctor das consultadissimas
"Grammatica expositiva" e "Grammatica historica" (que foi para a epocha
tão referencial quanto, mais tarde, um Napoleão Mendes de Almeida com
sua "Grammatica methodica", ou quanto um Evanildo Bechara, até mesmo um
Pasquale, actualmente), vivia alertando para não confundirmos o correcto
"auctor" com o erroneo "author", mas escrevia erradamente "eccletico" em
vez do correcto "eclectico". Aurelio, cujo "Pequeno diccionario
brasileiro da lingua portugueza" precedeu o actual e registrava entre
parenthesis a forma antiga dos vocabulos verbetados, consignou "phimose"
com "Y", confundindo a palavra com os cognatos de "phymatose". Bilac, em
seu "Tractado de versificação", escreveu "satira" com "Y", sendo que
apenas "satyro" se escreve assim. Eu mesmo, que me gabo das obsessões,
cochilei e escrevi "Delphino" com "F". Coisas que acontecem nas melhores
familias typographicas...

Nesse poncto do pappo, o outro amigo, ja enthusiasmado com o assumpto,
suggeriu que se creasse uma communidade no Orkut para os adeptos da
velha orthographia, typo "Eu prefiro o PH" ou "Eu adopto o systema
archaico". Deixei por conta delle.

Não sei si terei seguidores, mas hoje sou caso isolado de resistencia a
qualquer orthographia reformada. Comtudo, na decada de 1940, quando a
reforma foi mais ampla, a resistencia era geral. A começar pelos nomes
proprios, cujos proprietarios se sentiam litteralmente desappropriados.
Ruy Barboza e Raymundo Correa ja não podiam protestar contra a alteração
para "Rui Barbosa" e "Raimundo Correia", pois estavam mortos, mas Alceu
Amoroso Lima fez questão de manter seu pseudonymo como Tristão de
Athayde, em vez de actualizal-o para "Ataíde". Os bahianos se recusaram
a mudar o nome do estado para "Baía" e conseguiram mantel-o como Bahia.
Ja os piauhyenses não tiveram tanta influencia politica e não puderam
evitar que o Piauhy virasse "Piauí". Os habitantes de Mogy Guassu
obtiveram uma victoria parcial, ja que evitaram a forma "Moji" mas não
impediram que Guassu virasse "Guaçu". Si eu fosse acreano, jamais
acceitaria graphar "acriano", da mesma forma como um alagoano não ia
gostar de escrever "alaguano". O proprio Antonio Houaiss, mentor da
actual reforma, seria pivô e victima das contradicções philologicas si
parasse para pensar.

Affinal, para que reformar? Na epocha da maior reforma se allegou que
era para facilitar a alphabetização e para seguir o exemplo de outras
linguas novilatinas, como o italiano e o hespanhol, que phonetizaram a
escripta. Allegações furadas, claro: os inglezes e francezes não são
menos alphabetizados porque conservam o "PH" em "philosophy" e
"philosophie", nem os italianos são mais cultos porque escrevem
"omossessuale" em vez de "homosexuale". Ademais, si quizessemos
realmente phonetizar nossa orthographia, teriamos que fazer como os
italianos, e não adoptar uma reforma meia-bocca que escreve
"homossexual" com dois "SS" mas mantendo o "H" mudo. Si fosse para
reformar, que fizessemos uma reforma coherente, escrevendo "ciência" e
"conciência" em vez de "sciencia" e "consciencia", por exemplo, ou
"umano" e "desumano" em vez de "humano" e "deshumano", ou "ábil" e
"inábil" em vez de "habil" e "inhabil".

Houaiss, nesta ultima reforma, allegou que o motivo seria melhorar a
communicação entre paizes lusophonos, especialmente nos tractados
internacionaes. Ora, temos mais o que fazer! Por acaso inglezes e
americanos deixam de se entender só porque um escreve "humour" e
"theatre" e o outro escreve "humor" e "theater"? O peor é que nenhuma
reforma melhora o entendimento ou a pronuncia do proprio nome do
Houaiss, que em Portugal continua sendo António e no Brasil scismaram de
escrever com circumflexo, "Antônio". Na antiga orthographia Antonio não
levava accento, de modo que cada povo pronunciaria o nome conforme sua
cultura, o que é mais logico.

Portanto, o que define o nivel cultural dum paiz ou fixa sua linguagem
escripta não é uma norma artificialmente architectada por academicos, e
sim o uso, o costume, regulado unicamente pela tradição, como no inglez,
no francez ou no portuguez anterior a 1943. Lingua fallada nada tem a
ver, nem precisa ter, com a lingua escripta, mesmo porque nenhuma
phonetização consegue retractar fielmente as differenças dialectaes ou
siquer o sotaque mais commum. Pura perda de tempo querer abolir os "PH",
"TH", "LL" e "TT" de "phosphoro", "mathematica", "Mello" ou "Mattoso",
pois mais se perde em reimpressões, revisões, correcções e actualizações
didacticas que o que se gastaria em ensinar e apprender as regras
tradicionaes. Em tempo: perde-se dum lado (o nosso) e ganham alguns
opportunistas no mercado editorial...

Bem lembrava Pereira que a orthographia phonetica ja tinha sido
practicada na phase mais embryonaria do nosso idioma, mas fora abolida
pelos latinistas do seculo XV justamente porque não reflectia, no espaço
e no tempo, as variações prosodicas da lingua fallada. Portanto, si ja
se restaurou a etymologia tempos atraz, nada impediria que abolissemos a
phonetica novamente, passando a escrever-se "chrysanthemo", "myosotis",
"cyclame", "amaryllis", "orchidea", "camellia" ou "dahlia", como Machado
escreveria o nome dessas flores... Pode ser idealismo, mas os poetas são
teimosos mesmo, como os hespanhoes que, apoz a dictadura franquista,
tiveram coragem de restaurar a monarchia. "¿Hay gobierno? ¡Soy contra!",
dizia o anarchista naufrago ao chegar àquella ilha semideserta. Eu ja
diria: "Ha desaccordo nos accordos orthographicos? Sou contra qualquer
accordo!" E passo ao largo, com ou sem communidade no Orkut.

No proximo capitulo começo a detalhar as taes regras tradicionaes (e as
modificações do mais recente "accordo"), para vermos como nenhuma
reforma lhes melhorou a applicabilidade.

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