sábado, 4 de maio de 2013

MARÇO/2009: "O ORPHANATO INGLEZ E O ASYLO PORTUGUEZ"


Outro dia um amigo me criticava pelo quixotismo de defender sozinho a
"velha" orthographia. Respondi que as reacções collectivas começam
assim, pela iniciativa isolada de algum inconformado, ao qual os demais
vão adherindo. E comparei minha attitude ao que acontece na lingua
ingleza. Elles não reformaram a orthographia e não se preoccupam com o
desapparecimento do "PH", mas a universidade de Oxford quer evitar que
certas palavras caiam em desuso e sumam do vocabulario fallado ou
escripto. Para isso foi creado um sitio chamado "Save the Words"
(savethewords.org), que estimula o emprego de palavras em risco de
extincção. Elles rastreiam a rede para detectar vocabulos que, de tão
raros, nem são reconhecidos pelos correctores orthographicos dos
programmas de edição digital. Depois de seleccionadas pelos
lexicographos, as palavras "esquecidas" são colladas no sitio, donde
berram em audio para que os internautas as adoptem, como si fossem
creanças desamparadas. Quem decide adoptar uma dellas tem que se
registrar no sitio e se comprometter a utilizal-a, tanto nas conversas
quanto na correspondencia. O sitio até emitte um certificado de adopção
para cada voluntario.

Ora, por que não crearmos, em portuguez, um sitio que estimule o emprego
da orthographia etymologica? Affinal, si os latinistas cultivam uma
lingua "morta", ou os esperantistas uma lingua "artificial", por que não
reconhecermos que o cultivo duma escripta "archaica" pode ter sua
importancia cultural, que vae muito alem da simples rebeldia individual
dum poeta cego?

Sciente estou de que poucos teem accesso às fontes de referencia
prequarentistas, como um "Diccionario contemporaneo da lingua
portugueza" (1881) de Caldas Aulete, ou um "Manual orthographico
brasileiro" (1921) de Julio Nogueira, e egualmente poucos teem erudição
grecolatina capaz de "reconstituir" a graphia antiga a partir da actual
forma phonetizada. Por isso estou preparando um minimanual, que
intitulei "Decalogo mattosiano", ou "Promptuario practico do systema
etymologico", para synthetizar regras e exemplos, excepções e casos
ommissos. (*) Logo disponibilizarei esse breviario. Por emquanto, vamos
commentar o que está vigorando.

Dos trez cavallos de battalha na nova reforma (trema, accentos e
hyphen), o mais tranquillo é o trema. Concordando ou não, todos sabem
onde elle existia e passam a saber que elle deixa de existir. Poncto
para o systema etymologico, pois antes de 1943 o trema nunca existira.
Typica notação alleman, apparecia somente em adjectivos como
"mülleriano", mas era extranho ao portuguez. Nem por isso alguem iria
pronunciar "linguiça" como "preguiça", nem "tranquillo" como "aquillo".
Bastava o costume para orientar o ouvido e a escripta. Nenhum drama,
portanto, nesta queda do trema, um signal que jamais deveria ter entrado
na lingua.

Ja quanto ao hyphen a porca torce o rabo, e teremos panno para manga.
Antes de analysarmos os innumeros casos particulares, comtudo, importa
resalvar que a nova reforma até que tentou uniformizar, mas acabou
escorregando nos mesmos problemas provocados pela bagunça do systema
phonetico arbitrariamente implantado em 1943, que ja fora remendado em
1971. Na raiz de tudo está a incoherencia de qualquer escripta que se
pretenda phonetica, contrapondo-se à intransigencia de qualquer escripta
que se pretenda etymologica. Vamos destrinchar.

Na briga entre etymologistas e phoneticistas, as consoantes insonoras e
geminadas são o maior pomo da discordia. Palavras como o substantivo
"penna" e o verbo "annullar" dão bom exemplo. Para os etymologistas
(como eu), os dois "NN" de "penna" são fundamentaes para entendermos que
a "pena" com um "N" só é dó ou punição, emquanto a "penna" com dois "NN"
é a antiga canneta. Da mesma forma, "annullar" (tornar nullo) nada tem a
ver com o dedo anular (com um "N" e um "L" só), mas para os
phoneticistas toda lettra dupla tinha que se reduzir a uma, de modo que
as palavras ficassem enxutas e leves. Mesmo sem concordar, eu até
entenderia, si o criterio fosse geral. Succedeu, porem, que os proprios
reformadores não se entendiam: queriam eliminar o "H" de "humidade" mas
não de "humanidade", embora graphassem "deshumanidade" sem "H". Queriam
tirar o "H" de "herva" mas não de "herbivoro". Queriam trocar o "X" de
"dextra" por "S", mas não tiraram o "X" de "extra". Ou reformassem duma
vez, ou deixassem como estava! Ahi veiu o peor: emquanto tiravam lettras
dum lado, doutro accrescentavam lettras onde não havia, como um "S" a
mais em "antiseptico" ou em "asymmetrico". Que adeanta fazer um buraco
para tapar outro? Crearam-se monstrengos como "antissético" e
"minissaia", quando o mais logico seria, aqui sim, usar o hyphen. E a
estupidez não parava por ahi: alguns prefixos exigiam hyphen, como
"auto", mas outros exigiam juxtaposição, como "anti", e tinhamos
absurdos como "auto-retrato" coexistindo com "antinazista". Agora chega
a nova reforma e altera "microondas" para "micro-ondas" e "auto-retrato"
para "autorretrato"! De novo duplicando consoantes que não são duplas!

Ora, a unica finalidade do hyphen seria justamente evitar essa falsa
duplicação de "RR" e "SS", alem de proteger o "H" que não quizeram
supprimir de "anti-horario". Si fossem realmente phoneticistas, deviam
mudar logo para "antiorário", "orário", "umano", "úmido", "erva",
mantendo o hyphen em "mini-saia", "auto-retrato", "anti-sético" e
"a-simétrico". Só assim o raio do tracinho teria alguma utilidade.

Quanto a mim, que faço em taes casos? O systema etymologico não
approxima a escripta da falla, de forma que, dependendo da clareza e do
bom senso, cada composto é unido ou separado: "antiseptico",
"asymmetrico", "autoretracto", "antinazista", "antisocial", "minisaia",
"microondas", "bom senso", "cavallo de battalha", "sacco de gattos"...
Era até melhor ter eu escripto "anarcholitterario" (tudo juncto) ou
"livre pensador" e "franco atirador" (separado) do que com hyphen, como
fiz no primeiro capitulo. O hyphen é, na verdade, um estorvo cujo
emprego devia ser restricto ao minimo exigido pela clareza.

Nós, etymologistas, gostamos de lettras a mais? Sim, mas não inventamos
lettras, não collocamos lettra a mais onde ella nunca existiu. Jamais
escrevo "antisocial" ou "contrasenso" com dois "SS". Si eu fosse
phoneticista, usaria o hyphen exactamente nesses casos, para favorecer a
pronuncia, e prompto. Antes escrever "asymmetrico" que "assimétrico".
Antes "autoretracto" (ou mesmo "auto-retracto") que "autorretrato".

Emquanto a maioria simplesmente segue a nova regra sem questional-a, eu
convido meus selectos leitores a reflectir que não são só os poetas que
teem liberdade para transgredir, mas todos aquelles que pensam no idioma
como um filho adoptivo, e não como um pae auctoritario.

(*) O manual acabou assumindo proporções mais volumosas e foi abbreviado
como appendice a um "Diccionario orthographico phonetico/etymologico"
que elaborei quattro annos depois e que, alternativamente intitulado
"Dicionário ortográfico fonético/etimológico", ja existe em archivo
digital e se espera editado em papel. (Nota de abril/2013)

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3 comentários:

  1. Para quando o "decalogo mattosiano"?

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    1. ... ou melhor, onde posso consultar o appendice de que fala? Obrigado.

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  2. Grupo 'ORTHOGRAPHIA ETYMOLOGICA DA LINGUA PORTUGUEZA'. Quem quizer adherir é bemvindo! https://www.facebook.com/groups/1565209547058921/

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