sábado, 14 de setembro de 2013

SEPTEMBRO/2013: "MERDA NA LINGUA E NOS DEDOS"

A exemplo de Satan, que tem innumeros heteronymos e cujo anus é beijado
pelas bruxas nos rituaes sabbaticos, a materia dejectada pelo anus
humano tambem é objecto de farta synonymia, directamente proporcional
aos tabus e aos euphemismos que a fecalidade envolve, como si nossa
aversão ou repugnancia a alguma coisa fosse, paradoxalmente, fonte de
riqueza vocabular.

Ao portuguez o latim deu duas palavras das mais significativas, uma
erudita, outra popular, respectivamente "fezes" e "merda". Excluo de
consideração outras, como "excremento", porque aqui quero commentar as
possibilidades de prefixação no plano orthographico, e a palavra
"excremento" ja traz em si o prefixo "ex", que pretendo exemplificar
cunhando alguns neologismos onde elle não existe officialmente mas
passará a existir hypotheticamente.

Si tomassemos, hypotheticamente, as palavras "fezes" e "merda" como
deverbaes, teriamos, respectivamente, os verbos "fecar" e "merdar". O
primeiro só existe quando recebe o prefixo "de", formando o verbo
"defecar". O segundo só existe quando, por influencia franceza, recebe o
prefixo "en" (que, assimilado, torna-se "em"), formando o verbo
"emmerdar". Mas ambos os verbos admittem, morphologicamente, todos os
prefixos usuaes na composição neolatina, como "ad", "con", "de", "des",
"dis", "en", "ex", "in", "ob", "per", "pre", "pro", "re", "sub" ou
"trans". Destes, alguns geram assimilação, que resulta em geminação
consonantal, como "ad+fecar", "dis+fecar", "ex+fecar", "ob+fecar" e
"sub+fecar", resultando nos neologismos "affecar", "diffecar",
"effecar", "offecar" e "suffecar", ja que o "F" inicial se duplica nesse
typo de assimilação. Ja o "M" inicial de "merdar" não se duplica nas
mesmas condições, donde os neologismos "admerdar", "dismerdar",
"exmerdar" e "submerdar". Em compensação, o "M" provoca assimilação em
"con+merdar", "en+merdar", "in+merdar" e "ob+merdar", gerando os verbos
"commerdar", "emmerdar", "immerdar" e "ommerdar". Isto vale como
parametro em todos os casos analogos de prefixação nos verbos iniciados
por "F" ou "M". O mais commum é o primeiro caso, pois as consoantes "B",
"C", "G", "L", "N", "P", "R", "S" e "T" tendem a geminar, como occorre
com o "F", salvo em casos excepcionaes. Portanto, temos "anniquilar" mas
não temos "ammittir" e sim "admittir"; temos "succeder" mas não temos
"summetter" e sim "submetter", e assim por deante.

No plano formal a coisa funcciona. E no plano semantico? Haveria
applicabilidade para taes neologismos? Para alguns, talvez. "Commerdar"
e seu equivalente erudito "confecar", por exemplo, significariam cagar
solidariamente em vez de solitariamente. Isso teria importantes
implicações anthropologicas, a julgar pelo que registra John Gregory
Bourke no livro ESCATOLOGIA E CIVILIZAÇÃO, de cuja edição italiana diz o
introductor Piero Meldini:

{A moderna bacteriologia ja jogou por terra aquelle que talvez seja o
mais tenaz preconceito relativo à hygiene pessoal, demonstrando que, ao
nivel do asseio real, ou seja, ao nivel da população microbiana que vive
sobre a pelle, o mais immaculado, depillado e desodorizado "dandy" está
quasi tão "sujo" quanto o menos perfumado "clochard", sem comtudo
possuir as defesas deste em termos de immunização.}

{Entretanto, qualquer observação de culturas extranhas a essa
rhypophobia occidental nos mostra como, mesmo quando é valida a
distincção entre sociedade repressiva e sociedade tolerante, inclusive
quanto às funcções excretoras e ao erotismo anal, em toda parte, em
maior ou menor medida, está vigente o chamado "odio aos intestinos". A
affirmação de Brown de que "a repressão pesa mais gravemente sobre a
analidade que sobre a genitalidade" parece ser universalmente certa.}

{Come-se em grupo; dorme-se em companhia, uns dos outros, poucos ou
muitos; faz-se amor a dois ou mais. No entanto, a solidão accompanha,
por norma, a actividade excretora.}

{Sem duvida, rechaçamos a rhypophobia: é prejudicial à saude. É nocivo à
sexualidade abbatter a golpes de desodorante cada honesto estimulo
olfactivo. Nem siquer é agradavel, mesmo quando alguem possa extrahir de
uma saturação de essencias um prazer neurotico, o que equivale a dizer
um desprazer despercebido como tal.}

{A coprophagia collectiva realizaria o communismo integral, segundo
Maeterlinck.}

O termo "rhypophobia", empregado por Meldini, baseia-se no affixo grego
"rhypo", que designa sujeira ou immundicie. A proposito de hellenismos,
vale lembrar que, si substituirmos o elemento "phobia" por "philia",
teremos "rhypophilia", o prazer na porcaria. Quanto ao cocô propriamente
dicto, alem da distincção ja commentada entre "escato" (fecal) e
"eschato" (philosophico), o termo mais especifico é "copro", que pode
ser associado a "phobia", "philia" ou "phagia" para designar, conforme o
caso, aversão, perversão ou ingestão.

Voltando ao latim e ao prefixo "ex", eu concluiria dizendo que os verbos
"effecar" (ex+fecar) e "exmerdar" poderiam ter sentido figurado, para
quando quizessemos cagar abertamente, isto é, exhibir a merda esthetica
ou artisticamente, como na poesia escatologica que faço. Accrescento,
illustrativamente, trez sonetos da serie allusiva ao thema
orthographico.


SONETO PARA O PARAISO OLYMPICO [3078]

Os gregos radicaes fazem de tudo
assumpto scientifico: o mais chulo
jargão fica solenne. Si eu engulo
caralho, sou "phallophago" e estou mudo.

"Necrophilo", "coprophilo"... um estudo
das taras mais communs nunca tem nullo
effeito: do sapphismo dando um pullo
eu caio no homoerotico desnudo.

Vulgar, "nymphomania" jamais é.
Chamaram de "escopophilo" o voyeur.
Chamei "podolatria" o amor ao pé.

Quem transa "urolagnia" mijo quer.
Prefere um "podosmophilo" o chulé.
O "androgyno" é que é macho: é até mulher!


SONETO PARA O PARAFUSO SOLTO [3079]

Quem soffre da cabeça e por escripto
registra seu problema, o que teria
de achar? Que tem "phrenia" ou tem "phobia"?
"Psychose"? "Dysthymia"? Que conflicto!

Quem tem na metaphysica o maldicto
costume de indagar por que Zeus cria
minhocas, achará a philosophia
capaz de responder? Não acredito.

Epistemologia, syllogismo,
hypotheses, premissas, nada evita
o typico dilemma, o eterno abysmo...

Ao menos nós podemos ter na escripta
parametros concretos, pois eu scismo
que nossa mente ainda é troglodyta.


SONETO PARA A PARAPHERNALIA SCIENTIFICA [3080]

"Esthetica" e "anesthesico" interpreto
eu pelo radical, como "hemogramma"
e "electrocardiogramma". O que mais chama,
porem, minha attenção, é o termo "estetho".

"Estheto" é sensação, mas incorrecto
seria "esthetoscopio", pois (exclama
o practico hellenista que honra a fama),
o esterno ou peito é "estetho"... Eu fico quieto!

Portanto, "estethoscopio" é o que se grapha.
Tambem "eschatologico" não vale
tal como "escatologico"... Que estafa!

"Estilo" é do latim, caso alguem falle
da penna e não do estylo... Assim, se safa
dum "ypsilo" o estilete... E eu que me ralle!

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