O blog ETYMOGRAPHIA archiva os commentarios de Glauco Mattoso sobre o systema etymologico que elle adopta e diffunde em chronicas publicadas desde 2009 e em seu DICCIONARIO ORTHOGRAPHICO PHONETICO/ETYMOLOGICO.
sábado, 18 de maio de 2013
JANEIRO A DEZEMBRO DE 2009
DEZEMBRO/2009: "GRAECUM EST, NON LEGITUR"
O dictado latino que dá titulo a este capitulo dá tambem uma idéa de
como Roma encarava os alphabetos extrangeiros. Dahi a expressão "isto
para mim é grego", no sentido de inintelligivel.
Com effeito, o latim fallado e escripto absorveu innumeros hellenismos,
principalmente no que tange aos ramos mais eruditos do latim
ecclesiastico e scientifico, mas nem todas as lettras gregas podiam ser,
digamos, litteralmente translitteradas, para sermos necessariamente
pleonasticos.
Por exemplo, o "phi", equivalente ao nosso "F", precisou de duas lettras
para represental-o, de modo que não fosse confundido com a consoante
eventualmente dobrada das palavras typicamente latinas. Assim, "officio"
tem clara origem latina, emquanto "ophidio" vem do grego; "effectivo" e
"ephemero" se differenciam da mesma forma.
Outros phonemas que, no portuguez, acabaram soando practicamente da
mesma maneira são o "CH" grego e o "QU" latino, que entretanto não se
confundem, como não se confundiam na pronuncia original. Assim, um nariz
"aquilino" vem da aguia latina, emquanto um calcanhar "achilleu" vem do
grego Achilles. No latim, a vogal "U" soava tanto em "aqueducto" quanto
em "aquatico", emquanto "ecchymose" jamais soaria como "equinoccio".
Mais confusos são os nossos dois sons de "I" e os dois de "T" do
alphabeto grego, correspondentes, respectivamente, às lettras iota
comparada com ypsilon (originalmente upsilon), dum lado, e tau comparada
com theta, do outro. Dahi a coexistencia, no portuguez, dos radicaes
"philo" e "phyllo", que os phoneticistas reduziram, indevidamente, a um
unico "filo". Assim, um animal "phyllophago" é o que se alimenta de
folhas vegetaes, emquanto um animal "philosopho" se alimenta,
figuradamente, de folhas impressas. Pelo mesmo caminho, um ser
"aletophyto" é apenas uma planta errante, emquanto um ser "alethophilo"
é uma pessoa em busca da verdade. Um "podophilo" jamais se confunde com
um "podophyllo", mesmo que o fetichista em questão seja um botanico...
Por ahi se vê como a orthographia etymologica é fundamental para
sabermos differenciar um texto "eschatologico" (philosophico) dum texto
meramente "escatologico" (fecal), ainda que, no fundo, seja tudo a mesma
merda. Quem tem practica não troca as bolas na hora de descrever a cor
da crista do gallo, a transparencia do coppo de crystal e os espinhos da
coroa de Christo...
O importante é conhecer os radicaes gregos, que, a rigor, não se
mixturam com os latinos, excepto nos hybridismos. Assim, tanto pode
haver um "T" como um "TH" em palavra originalmente grega, a exemplo de
"necroterio" (onde o "terio" significa "logar") e em "megatherio" (onde
o "therio" significa "fera"), bem como inexiste o "F" em palavra
typicamente grega, como "phosphoro", "photographo" ou "philosopho". No
caso de "chloroformio", "hyposufficiente", "gypsifero" ou "hydrofugo", o
segundo elemento é latino, characterizando o hybridismo.
Si todos usassemos o systema etymologico, ficaria mais facil de entender
uma lettra como a da canção "Lingua", de Caetano, quando elle compara os
termos "patria", "matria" e "phratria", sendo os dois primeiros latinos
e o terceiro grego, este significando "tribu" e trocadilhando com o
sentido latino da fraternidade. O hybridismo intencional ficaria mais
claro si graphassemos correctamente os hellenismos "hippodromo" e
"hypothese", onde "hippo" significa "cavallo" e "hypo" significa
"abaixo". Em hypothese nenhuma alguem mixturaria um termo de origem afro
como "samba" e um grego como "dromo", mas o brasileiro,
anthropophagicamente, consegue transformar um valor cultural
afrodescendente em aphrodisiaco, jogando o "F" e o "PH" no mesmo sacco,
phenomeno que, como pretendeu Caetano, mais se valoriza quando os
phonemas se synthetizam na escripta.
E ja que é para embolar o meio de campo, escolhi como illustração um
soneto bem dialectico, tanto no sentido da prosodia quanto na mixtura de
procedencias. Até 2010!
SONETO SOLETTRADO [375]
Decifre um abecê no abracadabra.
Deduza o delta errado do programma.
A formula se grapha com o gamma.
Viado tem hiato na palavra.
John Kennedy deu bode; o Lampe é cabra.
Mamãe amammentando, o nenê mamma.
Do opiparo quitute o aroma chama.
O russo arreda o rico e a roça lavra.
Um esse se assemelha ao saxophone.
O tu, segundo o verbo, é uma pessoa.
Ve dabliu é rei plebeu, sem quem desthrone.
O xiz parece a cruz, que se abençoa.
Tem cara de forquilha o pissilone.
O ze ziguezagueia, zurze e zoa.
///
NOVEMBRO/2009: "NEM TANTO AO MAR, NEM TANTO A MARTE"
Fallava eu de conciliação dos extremos porque sei como tendemos a ser
radicaes quando defendemos nossas idéas. Eu mesmo fui victima da
forçação de barra quando, para contestar os reformistas que queriam
transformar "acreano" em "acriano", extendi a desinencia "eano" até a
adjectivos que não precisariam leval-a, como "oswaldiano",
"petrarchiano", "bilaquiano" ou "mattosiano". Na verdade, a terminação
adjectiva em "ano" teria que ser precedida, si fosse o caso, da vogal
"E" apenas quando o substantivo terminar em "E" e precedida da vogal "I"
quando o substantivo terminar em outra vogal ou em consoante. Tracta-se
duma regra relativa que, embora às vezes confunda, na practica funcciona
sem extranheza.
Assim, si os substantivos forem Pessoa, Alagoas, Piracicaba, Cuyabá,
Curityba, Cuba, Venezuela, America, Africa, Angola, Roma, Esparta, a
terminação dos adjectivos será simplesmente "ano". No caso de Colombia,
India, Bahia, Australia, Italia, Ukrania, California, Esthonia, Siberia,
Victoria, Bolivia, Acacio, Julio, Gregorio, Diluvio, o "I" que ja faz
parte do nome se reflectirá, obviamente, na terminação "iano". Dahi a
razão de grapharmos "borgiano" si a palavra for allusiva ao sobrenome
Borgia, differentemente de "borgeano", allusivo a Borges.
Si os substantivos forem Borges, Rodrigues, Menezes, Acre, Sade, Gide,
Bocage, Shakespeare, Voltaire, Sartre, Appalaches, Euclides, Camões, a
terminação dos adjectivos será "eano". Inclusive, obviamente, quando o
"E" preceder a vogal final do substantivo, qualquer que seja esta, como
em "craneo" ou "varzea".
Si os substantivos forem Torquemada, Gonzaga, Obama, Sahara, Guevara,
Bandeira, Zaratustra, Caucaso, Machado, Neptuno, Parnaso, Drummond,
Hollywood, Freud, Jung, Reich, Bach, Orwell, Iran, Lacan, Juppiter,
Venus, a terminação dos adjectivos será "iano", na qual o "I" apparece
addicionalmente.
Si os substantivos forem Haiti, Vivaldi, Verdi, Fellini, Pasolini,
Mussolini, Khomeini, Caymmi, Dali, Gaudí, Mogy, a terminação "ano"
apenas se accrescenta.
Si os substantivos forem Itu, Pagu, Peru, Ubu, as vogaes "E" ou "I"
nunca occorrem.
Claro está que a questão nem se colloca quando o adjectivo dispensar
outra vogal antes de "ano", independentemente da lettra final do
substantivo, como em "Alemtejo", "Athletico", "Mexico", "Francisco",
"Luthero", "Pernambuco", "Rheno", "Sergipe", "Moçambique", "Goyaz",
"Texas", "Elizabeth", "Nazareth", etc.
Duvidas sempre nos assaltam, comtudo. Ao repassarmos adjectivos
extraterrenos como "juppiteriano" ou "venusiano", immediatamente nos
occorre o mais commum: "marciano". Si o planeta Marte tem seu nome vindo
do latim nominativo "Mars", alguem poderá achar que a palavra deveria
ser "marsiano", com "S". Si considerarmos que a origem está no genitivo
"Martis", que daria em portuguez "Marte", nossa regra mandaria graphar
"marteano". Donde a forma "marciano", então? Succede que de "Martis"
veiu "Martius", que deu "Marcio" em portuguez, com o "T" que
habitualmente se converte em "C", como em "patientia" dando "paciencia".
Dahi o adjectivo: "marciano", com "C" mesmo.
E para não perder a deixa, faço jus ao vicio poetico e divago um pouco:
si os habitantes do planeta vermelho são, sabidamente, verdes, que cor
teriam os habitantes da Lua, que por signal não são "lunaticos" nem
"lunianos", e sim "selenitas"? Si forem prateados, poderiam ser
scientificamente classificados, em termos substantivos, como
"argyrodermes", que tal? Sendo amarellos, seriam "xanthodermes"; si
brancos, "leucodermes"; si azues, "cyanodermes"; si verdes,
"chlorodermes"; si vermelhos, "erythrodermes"; si dourados,
"chrysodermes"; si pardos, "pheodermes", e assim por deante... Basta
brincar com os radicaes gregos, com os quaes se podem formar quaesquer
palavras, tanto antepondo como pospondo, a exemplo de "gynandro", que
significa "mulher macho", ou de "androgyno", que significa "homem
femea". Qualquer hora vou postar um glossario desses radicaes, me
aguardem. (*)
Voltando à vacca fria, fecho com um soneto que baptizei de
"paulopolitano" por ser allusivo à cidade de São Paulo, assim como
"soteropolitano" allude à cidade de Salvador, ja que "salvador" ou
"protector" em grego é "sotero".
SONETO PAULOPOLITANO [110]
Alguns passos alem do Marco Zero
a cathedral da Sé, quasi acabada,
resume em neogothico a salada
humana e deshumana onde me gero.
No leste nordestino ja fui vero
bambino da rural Villa Hinvernada.
Nasci, porem, na Lapa, que é pegada
à toca dum poeta que é panthero.
Elyseos, Campos, Braz, Bixiga e Mooca,
Belem, Limão, Carrão, Pary, Moema:
Qual minha casa, cova, taba, toca?
Não fosse eu paulistano tão da gemma!
Na rua Lavapés me desembocca
a lingua, que alli lave, goze e gema!
(*) O referido glossario figurou como addendo ao "Tractado de
orthographia lusophona", originalmente disponivel neste blog, e foi
incorporado ao "Diccionario orthographico phonetico/etymologico" de
Glauco Mattoso.
///
OUTUBRO/2009: "ATROPELOS NOS ANTHROPONYMOS"
Si não me falha a memoria, Graciliano Ramos pilheriou, quando assignava
as chronicas posteriormente reunidas no volume "Linhas tortas", que cada
um poderia escrever seu proprio nome como bem entendesse, e um sujeito
chamado Camelo tinha todo o direito de usar dois ou até trez "LLL",
ainda que um camelo tivesse no maximo duas corcovas. Blagues à parte,
tracta-se duma incontestavel prerogativa individual dum cidadão, tanto
que nenhuma reforma conseguiu obrigar ninguem a refazer documentos em
chartorio, chegando os reformadores, quando muito, a recommendar que os
nomes de pessoas mortas fossem phonetizados, como os de Raymundo Correa
e Luiz Delphino, que ficariam "Raimundo Correia" e "Luís Delfino".
Por esse criterio, Vinicius de Moraes ja teria que ser graphado com
accento agudo no segundo "I" e com outro "I" no sobrenome. Chico Buarque
que se prepare para perder um "L" em Hollanda, e outro Buarque para se
revirar na tumba quando, em vez de Christovam, escreverem "Cristóvão".
Horror maior seria Caetano supportar que graphassem sem geminadas seu
maravilhoso nome completo, Caetano Emmanuel Vianna Telles Velloso!
Verdade seja dicta que nem todos fazem questão das lettras no devido
logar, a começar por Caetano, que assigna "Veloso" com um "L" só, sem
fallar na Ritta Lee com um "T" só, na Ignezita Barroso sem o "G", no
Sylvio Sanctos sem o "Y" e o "C", na Heloiza Hellena, no Aloysio
Mercadante ou no proprio Luiz Ignacio Lula da Silva.
Nunca me esqueço daquella phase em que a "Folha de S. Paulo" cahia nas
mãos da geração do Octavinho Frias e, na soffreguidão de reformar o
manual de redacção, a molecada quiz graphar até o nome do Sarney como
"Sarnei"... e fico me perguntando si o actual editor do jornal se
assigna como Octavio ou como "Otávio"...
Na "Encyclopedia de litteratura brasileira" (titulo que obviamente estou
"desreformando" por vingança), organizada originalmente por "Afrânio"
Coutinho, meu proprio pseudonymo apparece com um só "T" em Mattoso, ao
lado de coisas terriveis como "Gregório de Matos" em vez de Gregorio de
Mattos, ou "Tomás Antônio Gonzaga" em vez de Thomaz Antonio Gonzaga. O
peor é que a obra faz isso tambem com os vivos. Um escriptor que se
chamasse Augusto dos Anjos Seraphim Cherubim teria seu verbete entrando
como "Querubim, Augusto dos Anjos Serafim", na lettra "Q", calculem só!
Alceu Amoroso Lima, si vivo fosse, teria o desprazer de ler seu
pseudonymo Tristão de Athayde como "Ataíde", ja pensaram?
Caso algum jornal embarcasse actualmente numa arbitrariedade dessas, me
ponho a imaginar o problema que se crearia para disciplinar, no caderno
de esportes, os singellos nominhos dos jogadores de futebol... Si nem
siquer os technicos conseguem disciplinar aquelles marmanjos balladeiros
e mascarados, que dizer de seus primorosos prenomes, tão bem escolhidos
por seus papaes e por suas mamães (inclusive com um pedacinho do nome da
mamãe e um do papae, typo Magdalennon ou Izabelvis)? Como teriam que
figurar, na legenda das photos que exhibem seus pezões com a sola em
primeiro plano voltada para a camera, durante uma sessão de exercicios,
aquelles craques cujo salario passa da conta e cujo QI não conta? Um
Kaykawan viraria "Caicauã"? Um Moacyrlyson viraria "Moacírlissom"? Um
Keyrsthon viraria "Quêirstom"? E um Damnrleyrryson, como ficaria?
Prefiro conciliar os extremos. Os paes teem o direito de baptizar seus
filhos como quizerem, sem que os grammaticos se intromettam, os
jogadores teem o direito de ser chamados pelo nome de baptismo, sem que
os jornalistas se intromettam, e os escriptores o direito de usar um
pseudonymo sem que ninguem os "corrija", siquer depois de mortos. Para
brincar mais um pouco com este assumpto serio, escolhi trez sonetos:
SONETO PARA O BAPTISMO DOS FILHOS [1808]
No terceiromundismo brasileiro
ninguem se chama Pedro nem José:
a gente se depara, o tempo inteiro,
com nome que vernaculo não é...
Sempre um "son", sempre um "ton", é o que primeiro
a um pae na idéa vem... À mãe até
occorre um "ley" ou "ney" alvissareiro
que ao filho no futuro traga fé...
Pedrilson, Josezilton, Pedriney,
Joseley... Meu nominho? Ja nem sei
mais como ficaria a escripta disso...
Si eu fosse um jogador de futebol,
então, alguma coisa mais de escol
seria: Pedrizélysson, Zezylsson...
SONETO PARA O BAPTISMO DAS FILHAS [1809]
Peor é quando os paes acham bonito
dar nome que de indigena pareça
num filho ou numa filha. Apenas cito
alguns que veem agora na cabeça:
Kauan, Kauê, Tayná, Luan... Que attrito
tal coisa causaria entre a condessa
do imperio e o proprio conde, nesse rito
sagrado, si a palavra fosse avessa?
Naquelle tempo um homem se chamava
Antonio ou Manoel! Até uma escrava
seria Joaquina ou Benedicta...
Agora é ja mania: Si não for
Whitnéa ou Waldisney, local a cor
terá si é Moacyrson ou Pepytha...
SONETO PARA O BAPTISMO DOS BISNETOS [1810]
E quando o sobrenome for um bicho?
Coelho, Leão, Lobo... ainda vae!
Carneiro e até Bezerra são um nicho
de estirpe familiar, de avô e de pae...
Ha casos, todavia, que um capricho
extranho nos parece, e, quando cae
na bocca deste cego um delles, picho
meu muro, e aquella tincta nunca sae...
Formiga, Aranha, Cobra e até Barata
estão na minha lista, e, nessa natta
ainda muitos mais vou ommittindo...
Lacraia, Escorpião, Sapo, Minhoca...
Não tarda, alguem no filho ja colloca
prenome e sobrenome... Não é lindo?
///
SEPTEMBRO/2009: "TOPICOS TUPYNICOS E TOPONYMICOS"
Outro dia, a proposito dos toponymos brasileiros, fallava eu das
variantes orthographicas do nome da cidade de Nictheroy, mais
propriamente Niteroy. Acho que seria opportuno recapitular as olvidadas
regras que disciplinariam as denominações geographicas autochthones. A
questão dos anthroponymos fica para outra occasião.
Me lembro bem de quando fiz lettras vernaculas na USP e, entre as
materias optativas, a gente podia programmar tupy ou toponymia, o que
practicamente dava na mesma, uma vez que a maioria dos nossos toponymos
são tupynismos... ou tupinismos.
Aqui ja começa a confusão, pois poucos entenderiam que graphassemos
"tupy" com "Y" e "tupinismo" com "I", ao mesmo tempo que graphavamos
"dandy" e "dandysmo", por exemplo. Affinal, pelo systema etymologico a
escripta ficava engessada pelos radicaes em todos os cognatos e
derivados, como em "psycho", que dava "psychanalyse", "psyche",
"psychico", "psychismo", "psychotico", "antipsychiatria" ou
"parapsychologia". Por que, então, não "tupynizar", "tupynificar" e
"tupygraphar" systematicamente? Como diria Oswald, "tupy or not tupy,
that's the question"...
O facto é que, tanto nos tupynismos, em particular, quanto, por
extensão, nos indigenismos em geral, os grammaticos e lexicographos
nunca se entenderam, fosse pelo criterio etymologico, fosse pelo
phonetico. Aurelio, por exemplo, registrava "paraty" com "Y" ao lado de
"tupi" com "I", emquanto Aulete ignorava solennemente os brasileirismos.
Vae dahi que, junctando suggestões de varias fontes e auctoridades,
cheguei à minha propria regulamentação. Na verdade, as regras anteriores
à reforma quarentista ja synthetizavam dialecticamente a tradição
escripta de tendencia etymologista e a coherencia logica das
systematizações phoneticistas. O que fiz foi uniformizar as differentes
posições a fim de estabelecer um parametro seguro.
Na practica, tudo gyra em torno dos phonemas consonantaes em "Ç/SS" e
"G/J", alem do vocalico "I/Y". Sabendo-se que os indios não tinham uma
linguagem escripta, alphabeticamente codificada como a dos idiomas
europeus, temos que partir do principio de que qualquer representação
orthographica será necessariamente arbitraria, mas, como parto do
principio de que o systema etymologico preserva ao maximo as formas
fixadas ha mais tempo, obrigo-me a optar pelo que se poderia chamar de
"phoneticismo etymologizante". Assim, teriamos a seguinte padronização:
No caso das palavras que phoneticamente levam "J" antes das vogaes "E"
ou "I", como "Moji", "Potenji", "Seriji", "Tibaji", "jibóia", "jirau",
"pajé", "Bajé" e derivados typo "bajeense" e "pajelança", prefiro
invariavelmente o "G", graphando "Mogy", "Potengy", "Serigy", "Tibagy",
"giboya", "girau", "pagé", "Bagé", "bageense" e "pagelança".
No caso das palavras que phoneticamente levam "Ç" antes de "A", "O" ou
"U", como "açaí", "Paiçandu", "Moçoró", "paçoca", "Paraguaçu" ou
"Piraçununga", prefiro invariavelmente o duplo "SS", graphando "assahy",
"Payssandu", "Mossoró", "passoca", "Paraguassu" e "Pirassununga".
No caso de "I" ou "Y" a questão é ligeiramente mais complexa, como nos
exemplos citados "Tibagy", "giboya", "assahy" e "Payssandu", mas tudo se
resume em reservar o "Y" para as syllabas tonicas e para os diphthongos,
precedido de "H" no caso das tonicas que implicam hiatos. Assim, as
palavras "Curityba", "Itamaraty", "jurity", "piriry", "Biriguy",
"Piauhy", "Carapicuhyba", "Atibaya" ou "Itatiaya" levam apenas um "Y",
da mesma forma que essa lettra occorre tonicamente em "Pery", "Cauby",
"Moacyr", "Jandyra", "curupyra", "sucupyra", "Sepetyba", "Parahyba",
"tupy", "poty" ou "Jaguary" (e diphthongalmente em "Araguaya", "cayapó",
"Cuyabá", "Tamoyo", "Tapuya", "Bocayuva", "aymoré", "Cayru", "guaycuru"
ou "Uruguay"), sem que se reflicta nos compostos quando haja
deslocamento da tonica, como em "tupinambá", "potiguar" ou
"Jaguariahyva", ainda que se mantenha em derivados como "curitybano" ou
"piauhyense". A rigor, não erra quem graphar "tupynambá", logicamente.
Explica-se, portanto, que o "Y" appareça em "Juquityba" mas não em
"jequitibá", bem como haver "H" na tonica "Sapucahy" e não na
diphthongal "Sapucaya", ou ainda a occorrencia de dois "Y" em "Tuyuty".
Sempre occorrerão excepções, naturalmente, como em "Ypiranga", que na
verdade se compõe de "Y+Piranga", ou em "Ivahyporan", composto de
"Ivahy+Poran", ou como nos diphthongos decrescentes em "caissara" e
"caipyra", que eu preferiria graphar "cayssara" e "caypyra". Tambem
excepcional é o caso em que, mesmo tonico, o "Y" não apparece porque se
nasaliza com "M" ou "N", como em "mirim", "curumim", "tupyniquim" ou
"Tocantins". No caso de "Nictheroy" em vez de "Niteroy", a excepção se
justifica, como ja mencionei, pela tradição toponymica e litteraria.
E por fallar em litteratura, alguns exemplos na direcção do equivoco ou
do acerto: em Gonçalves Dias, o poetico "Y-Juca Pirama" exhibe,
correctamente hyphenada, sua origem composta, emquanto "Os Timbyras" às
vezes apparece erroneamente graphado como "Os Tymbiras", inclusive no
tractado de Bilac. Em Alencar, é correcta a ausencia do "Y" em "Iracema"
e a presença em "O Guarany". Ja o romance de Mario de Andrade devia ser
graphado "Macunahyma" e não, na forma ethnographica, "Makunaima".
Paro por aqui, quando me occorre este soneto para illustrar a materia:
SONETO PARA UMA TATTUAGEM ATTRAHENTE [2092]
"Tatuapé", tupy de origem, é
"tatu que 'inda não pode andar de carro",
si formos num moleque botar fé
quando elle, em meio à turma, tira sarro...
Disposto a fazer graça, digo até
que a ver com tattuagem tem... Me agarro
à hypothese: si alguem tattua pé,
tattua mão e braço... E ja me amarro!
Que typo de "tattoo" num pé se faz?
Si for marcar a lancha dum rapaz,
prefere-se uma bocca de mulher...
No pé duma menina, é temptador
um olho que nos olha, cuja cor
reflecte quem os olhos lhe puzer...
///
MAIO/2009: "LETTRA QUE TE QUERO LETTRA"
Nessa bagunça que characteriza a orthographia reformada desde a decada
de 1940, a toponymia brasileira offerece um complicador a mais. Temos
nomes geographicos typicamente portuguezes, como Sancta Catharina, Minas
Geraes e Matto Grosso, convivendo com toponymos tupys, como Parahyba,
Goyaz e Sergipe. Si as reformas fossem applicadas systematicamente,
tanto uns como outros seriam violentados: Mossoró viraria "Moçoró",
Pirassununga viraria "Piraçununga", Jahu viraria "Jaú", Piauhy viraria
"Piauí", Mogy Guassu viraria "Moji Guaçu", Sergipe viraria "Serjipe",
Bagé viraria "Bajé" e Bahia viraria "Baía", victimas das mutilações,
juncto com os catharinenses, mattogrossenses e goyanos. Apenas os
bahianos batteram o pé e se recusaram a ser chamados de filhos da
"Baía", emquanto outros cidadãos brasileiros tiveram que engolir
"Curitiba" em logar de Curityba, "Cuiabá" em logar de Cuyabá, "Vitória"
em logar de Victoria, "Teresina" em logar de Therezina, ou "Belo
Horizonte" em logar de Bello Horizonte.
A cidade de Niteroy poderia, si quizesse, invocar a tradição para
reivindicar a graphia "Nictheroy", a mais usual dentre as varias formas
encontradiças ha cem annos: "Niteroy", "Nicteroy", "Nitheroy",
"Nyteroy", etc. Na historia da litteratura brasileira ha pelo menos dois
poemas com o titulo de "Nictheroy", um do padre Januario da Cunha
Barbosa, outro de Firmino Rodrigues Silva, e é dessa forma que Bilac os
registra em seu "Tractado de versificação". Por seu turno, Julio
Nogueira, no "Manual orthographico brasileiro", registra que Capistrano
de Abreu graphava "Nyteroe", mas resalva que essa graphia tambem seria
erronea.
Pelas regras do systema que adopto, os termos de origem indigena
empregavam o "Y" em dois casos: nas syllabas tonicas (precedido de "H"
nos hiatos) e nos diphthongos, como em "Itatyba", "Carapicuhyba",
"Sapucahy", "Sapucaya", "Itatiaya", "Atibaya", "Ituyutaba" ou "Tuyuty".
Verdade seja dicta que, como toda regra, esta admitte excepções, ante os
exemplos de "Camaragibe", "Cambuquira" ou "Sergipe". Mas o importante,
aqui, é que os encontros consonantaes "CT" (typico do latim, como em
"nocturno") e "TH" (typico do grego, como em "cothurno") seriam,
evidentemente, extranhos ao tupy aportuguezado, no qual a unica forma
correcta para o nome da cidade fluminense é Niteroy. Em todo caso, tudo,
menos "Niterói", como se vê escripto agora.
Occorre que, na orthographia etymologica, aquillo que se crystallizou
pela tradição pode valer mais que o resultado duma analyse scientifica.
Assim, si Bagé conseguiu conservar seu "G" e a Bahia seu "H", por que
não dar a Niteroy o direito de officializar a graphia Nictheroy?
Discussão maior poderia render o proprio nome do paiz, que hoje
escrevemos com "S" e os inglezes com "Z". Mas elles o fazem porque nós
mesmos usavamos "Brazil" no tempo do imperio e na primeira metade do
seculo XX. Conservadores que são, não mudaram a graphia, emquanto nós
ficamos aqui nesta crise de identidade. Ja o caso de Brasilia, que
nasceu escripta com "S", passou assim para os inglezes, que, portanto,
jamais escreverão "Brazilia", nem que, na nossa proxima reforma,
adoptemos o "Z" nesses toponymos. Em tempo: Aulete e outros auctores
registravam tanto "Braz" como "braza" com "Z". Mas, a rigor, apenas em
caso de consoante final se exigiria tal graphia (como em "gaz", "giz",
"mez" e "puz"), donde a obrigatoriedade de grapharmos "Braz" e a
liberdade de optarmos por "Brazil" ou "Brasil", tendo Julio Nogueira
preferido com "S".
Peor, porem, fica a questão dos adjectivos. Até os orgulhosissimos
bahianos se submetteram ao incoherente tractamento de "baianos" quando
da reforma orthographica, da mesma forma como os corinthianos acceitam
ser tractados de "corintianos"... ainda que ninguem concorde com as
graphias "Baía" e "Coríntians"! Deante dessa subtil circumstancia, qual
deve ser a reacção dos acreanos, agora que os reformistas de plantão
scismaram de adoptar a graphia "acrianos" para os filhos do Acre? Sorte
dos sergipanos, que, alem de conservarem seu "G", nunca se denominaram
"sergipeanos": caso fossem submettidos aos rigores reformisticos, teriam
que se considerar "serjipianos"! Ja pensaram?
De minha parte, o systema etymologico estava adoptado desde o primeiro
livro de poesia ("Apocrypho Apocalypse", de 1975), mas acabei fazendo
concessão ao systema phonetico a partir de 1981, quando alguns livros
passaram a sahir por editoras commerciaes, e até o final de 2008
practiquei o phoneticismo para não difficultar a divulgação da obra
poetica. Ultimamente, baptizei de "Serie Mattosiana" a collecção dos
livros de sonetos, o que suscitou a indagação de alguns leitores:
"mattosiana" ou "mattoseana"? Si fosse agora, a partir de 2009,
adjectivos como "sadeano", "camoneano", "bocageano" ou "sartreano"
levariam, de minha penna, "E" em vez de "I", mas não em todos os casos,
e sim quando o "E" ja estivesse presente no substantivo, donde
"petrarchiano", "bilaquiano" e "mattosiano" ao lado de "camoneano",
"bocageano" e "shakespeareano". Não é o caso de "gregoriano" ou de
"victoriano", cujos substantivos ja trazem o "I".
Tudo, emfim, é questão de bom senso e de preservação do "graphosystema",
que, tal como o "ecosystema", necessita de activistas que de facto
practiquem o que theorizam, e não de proselytos que só abbraçam a causa
da bocca para fora. Si encaro o portuguez escripto como encaro a matta
atlantica, não basta manter bem climatizada a minha bibliotheca: tenho
que semear mais livros, a mancheias, como Castro Alves, todos escriptos
na boa, velha e chlorophyllatica orthographia etymologica! Fallei e
disse!
///
ABRIL/2009: "VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ ESCREVENDO? COM SEU COMPUTADOR
FALLANTE!"
Ja pensou si você, occupado na digitação, quizesse escrever "viado" ou
"buceta" e o corrector orthographico do seu computador não deixasse,
avisando que o certo seria "veado" e "boceta"? Que faria você?
Submetter-se-ia à censura do computador? Mandal-o-ia à merda? E si
alguem de carne e osso quizesse cagar regra, suppondo ter poder sobre
todos os correctores digitaes do paiz? Eu o mandaria engolir seu
"coerdeiro"! E você, o que acha? Para mim é "coherdeiro", com "H" e sem
hyphen, e estamos conversados, como diria a Aracy de Almeida.
Meu computador fallante não se attreve a cagar regra emquanto digito,
mas fico imaginando a raiva dos meus collegas de penna deante desses
omnipotentes academicos da commissão encarregada de publicar o tal VOLP.
Seria o caso de perguntar: "encarregada" por quem? Eu por acaso votei
para eleger tal commissão? Passei procuração para decidirem como devo
graphar "veado", "boceta" ou "coherdeiro"? Algum de vocês votou ou
passou procuração?
Depois que sahiu na revista "Língua Portuguesa" (cujo titulo devia ser
"Lingua Portugueza") mais um artigo meu contra a actual orthographia,
augmentou a quantidade de mensagens na minha caixa de entrada. Numa
dellas, o leitor me interpella accerca do termo "accordo" para designar
a reforma ora vigente. De facto, nada mais ironico que baptizar de
"accordo" uma norma baixada de forma tão auctoritaria.
Poucos attentaram para o detalhe historico, mas não foi casual que o
"accordo" de 1943 (que substituiu da noite para o dia e de cyma para
baixo o systema etymologico pelo phonetico) tenha sido officializado
durante a dictadura getulista, nem que o decreto de 1971 (que reduziu a
quantidade de accentos mas manteve o systema phonetico) tenha sido
baixado durante a dictadura mais recente, ja sob o AI-5, assignado pelo
mais linhadurista dos generaes de plantão. Tudo isso é symptomatico da
arbitrariedade e da arrogancia com que taes decisões são tomadas, e o
facto de que o actual "accordo" entre em vigor num periodo suppostamente
democratico não o livra do character auctoritario e illegitimo.
Basta observar o que occorre nos paizes mais desenvolvidos e
civilizados: nem os academicos de Oxford ousam profanar a graphia do
idioma inglez, nem os da Academia Franceza o fazem na sua lingua. Só
mesmo nesta colonizada e atrazada communidade lusophona um assumpto
dessa magnitude é monopolizado por um unico Houaiss ou por meia duzia de
Becharas! Quem elles pensam que são para cagar regra sobre um universo
de fallantes e uma parcella de lettrados? Querem ter mais poder que um
monarcha absolutista, mas nem siquer representam a intellectualidade da
qual se julgam oriundos! Vocês não acham petulancia demais?
O mais chato de tudo é que sempre tive pelo Houaiss o maior appreço,
sempre lhe admirei o saber encyclopedico e a paternidade de importantes
diccionarios. Elle não precisava escorregar nesse megalomaniaco impulso
de vaidade, nessa infeliz pretensão de legislar theocraticamente, como
si fosse um ministro do STF, inebriado pela sensação de poder.
Quem decide sobre o uso dum idioma são seus usuarios, e não apenas os
vivos, mas todos aquelles que o fallaram e escreveram ao longo dos
seculos. Nesse contexto, as normas se formam, se consolidam ou se
alteram paulatina e ponctualmente, jamais por decreto de alcance
exhaustivo e effeito immediato. Portanto, orthographia não é coisa que
se reforme como um regimen politico ou tributario. Aliaz, não
conseguimos reformar siquer nossas instituições mais transitorias, sejam
ellas civis ou fiscaes, e esses gattos pingados querem reformar nossa
quinhentista escripta? Que audacia, a desses tyranninhos de fardão, hem?
Dahi por que, sommando-se à minha sympathia pelas raizes grecolatinas,
adopto esta attitude rebelde de repudio à norma vigente. Insisto: nós,
escriptores, somos os legitimos usuarios da lingua escripta, e nós,
poetas, exercemos com auctoridade o direito à licença poetica. Ninguem
mais credenciado que um poeta para deliberar sobre o que seja correcto
em materia de grammatica ou de orthographia. Affinal, os proprios
lexicographos recorrem a nós quando querem abonar as accepções ou
applicações morphologicosyntacticas dos vocabulos que verbetam, não é
mesmo?
Não faço questão que me citem nos futuros diccionarios, mas faço questão
de consultar prioritariamente os diccionarios anteriores às dictaduras
republicanas, dictas "revolucionarias" mas litteralmente reaccionarias.
Prefiro ser, paradoxalmente progressista, adepto da graphia mais
"conservadora" na qual escreveu Machado, aliaz fundador da nossa
academia.
///
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário