sábado, 4 de maio de 2013

JANEIRO/2009: "ORTHOGRAPHIA ACTUAL E ANARCHISMO INTELLECTUAL"


A partir de agora, janeiro de 2009, vou aproveitar a vigencia da reforma
orthographica para mais um acto de rebeldia. Não se tracta propriamente
de desobediencia civil, mas de independencia intellectual. Na verdade,
eu ja practicara o systema etymologico durante annos, na decada de 1970,
emquanto editei o "Jornal Dobrabil", um fanzine anarcholitterario. Mas,
antes de explicar por que adoptei a norma archaica (que aliaz nem era
tão archaica assim, como veremos), quero recapitular um artigo que
escrevi nos annos 1980 para a revista "A-Z" (antiga "Around", da boate
Gallery, poncto badalado de Sampa).
 
O artigo intitulava-se "Sem rei nem rock" e tractava da nova
constituição (1988), que previa um plebiscito para votarmos si a
republica deveria continuar ou si a monarchia deveria ser restaurada.
Naquelle clima de debatte, relatei uma passagem autobiographica para
demonstrar que fui mais careta, na faculdade, que os proprios membros da
TFP (Tradição, Familia e Propriedade, organização direitista da epocha).
Vamos ao trecho da materia que nos interessa aqui:
 
[Não sei se o partido tá funcionando, pois não me filiei. O fato é que,
com ou sem partido, sou monarquista por princípio, assim como os velhos
& filhos sobreviventes do período imperial, mas também por uma espécie
de nostalgia folclórica, uma curtição que já deixou de ser kitsch pra
virar sofisticação intelectual, ou seja, finesse. Quem me vê como um
cara tarado & debochado pode não acreditar que passei a adolescência
toda me portando & vestindo como um verdadeiro TFP. Fui tão conservador
que, quando alguns tefepistas me procuraram na faculdade (em pleno
governo Garrastazu) e me convidaram a entrar pra casa de Dominus
Plinius, eu respondi que toparia com uma condição: a de que cada um dos
emissários escrevesse três palavras numa folha de papel. As palavras
eram "filosofia", "clorofila" e "crisântemo". Eles não eram tão bobinhos
e sacaram que eu os tava testando. Tentaram entrar na minha e escreveram
"philosophia". Mas nas outras duas se embananaram. Não sabiam todas as
letras de "chlorophylla" e "chrysanthemo". Aí foi minha chance de
encerrar o papo: "Vocês não são tão tradicionalistas. Do contrário, além
da volta da monarquia, defenderiam tambem o uso da 'orthographia
etymologica'." E virei as costas. Foi nessa fase excêntrica, de colete &
relógio de bolso, que encasquetei uma idéia ainda mais extravagante: a
de ser recebido pelo príncipe herdeiro da Coroa brasileira. Meus
conhecimentos sobre as instituições imperiais se resumiam aos dados
históricos e ao texto da constituição de 1824, pela qual o regime é
hereditário por primogenitura masculina. Dizia o artigo 117 que a
descendência de D. Pedro I sucederia ao trono "segundo a ordem regular
de primogenitura e representação, preferindo sempre a linha anterior às
posteriores; na mesma linha, o grau mais próximo ao mais remoto; no
mesmo grau, o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo, a pessoa mais
velha à mais moça". Assim, se a princesa Isabel teve três filhos, o mais
velho, Pedro de Alcântara, Príncipe do Grão-Pará, seria o herdeiro. Como
o príncipe já morreu, seu filho Pedro Gastão seria o sucessor. E D.
Pedro Gastão, segundo me disseram, morava em Petrópolis, no palácio
Grão-Pará. Não tive dúvidas. Escrevi uma carta (em ortografia antiga,
naturalmente) onde me declarava monarquista e, na maior cara de pau,
pedia a Sua Alteza que me hospedasse no palácio. Será que eu esperava
resposta? Se não esperava, veio. Foi uma recusa, lógico, mas uma recusa
com aquela classe, aquela elegância aristocrática que só os nascidos em
berço de ouro sabem ter. Escrita de próprio punho num cartão timbrado
com o brasão imperial e ilustrado com uma gravura de 1870 representando
o palácio Isabel (hoje palácio Guanabara, sede do governo do Rio), dizia
a resposta: "Prezado Pedro José Ferreira da Silva (é meu nome plebeu, e
bem plebeu, por sinal, ó desgraça!): Ao voltar de viagem achei no Grão
Pará sua amável carta. Agradeço os termos tão amáveis nela contidos. A
Princesa estando ainda na Europa não me é possível o hospedar agora. Com
meu sincero saudar, Dom Pedro."]
 
A continuação dessa historia não vem ao caso, mas basta aquelle panorama
para imaginarmos como o Brasil se debattia entre velhos e novos valores.
Ser livre pensador (ou franco atirador, no caso do poeta) em tal
scenario não era facil. Os manicheistas nos pressionavam de todo lado:
si você não era de direita, tinha que ser de esquerda; si não era
fascista, tinha que ser marxista; si não era monarchista, tinha que ser
republicano; si não era sambista, tinha que ser rockeiro; si não era
parnasiano, tinha que ser concretista; si não era sonetista, tinha que
ser verbivocovisual. Ora, si ha uma coisa que eu detesto, é egrejinha, é
panellinha. Ninguem compartilha commigo meu glaucoma, minha cegueira,
meu masochismo, meu fetichismo ou minha insomnia, mas querem que eu
compartilhe idéas e ideaes collectivos, indifferentes à diversidade das
individualidades, né? Fodam-se, pensei eu naquella epocha, e ainda penso
assim. Não tenho que seguir chartilha alguma nem prestar contas a
nenhuma "auctoridade intellectual". Só tenho que consultar minha
consciencia e conferir minha trajectoria existencial. Sempre nadei
contra a maré e, hoje em dia, nestes tempos de "posmodernidade", de
"globalização" e de "realidade virtual", nada é mais anticonvencional
que ser antiquado, nem mais anarchico que ser anachronico. Dahi por que
virei sonetista e, agora, adopto de novo a orthographia em que
escreveram Machado e Bilac, Alencar e Delphino.
 
O gancho, porem, desta attitude minha é a actual reforma, contra a qual
até escriptores bemcomportados se posicionam, inconformados. Della
tractarei nos proximos capitulos desta columna. E ja vou avisando ao
editor para não passar meu texto pelo corrector orthographico, do
contrario me fodo todo.
 
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